Silêncio
1
no clarão
da angústia desfeita em pó
conheço o desnecessário como os pobres conhecem a
roupa última
e os velhos trastes
e sei que este desnecessário
é o que o país precisa de mim
confiável como um acordo secreto
o calar-se como vida
e para toda a minha vida
2
no entanto, o calar-se é doação, e para mim mesmo: o
silêncio
3
acostumar-me a tal silêncio
que seja como o coração que não se ouve bater
como a vida
que pareça um de seus lugares
e nisso eu sou – como a Poesia é
e eu sei
que meu trabalho é árduo e existe para si mesmo
como no cemitério da cidade
a insônia do vigia
1954–1956 |
Sobre mim mesmo
sucintamente
Nasci na Tchuváchia, num povoado com florestas sem fim, ao redor. Parte da minha infância (1939-1941) decorreu na Carélia, de onde a nossa família, durante a guerra, foi enviada de retorno à pátria. As impressões da Carélia encontraram expressão, bem recentemente, no ciclo dos meus versos sobre a infância.
Aigui é o sobrenome de nossa gente, conservado desde os tempos do paganismo, em tradução ele quer dizer "aquele mesmo".
Em meus primeiros versos escrevi muito sobre meu pai, o culto infantil e juvenil do pai se expressou também no meu primeiro livro de versos.
Dezenas de lembranças vivas estão ligadas a meu pai. A par dos relatos de minha mãe, elas testemunharam ter sido ele um homem extremamente sociável e expansivo, amigo das improvisações e das mistificações inocentes. Ele concluiu uma faculdade operária tchuvache e ensinava língua russa e literatura numa escola. Sua sociabilidade não entrava em conflito com seu nomadismo: não conseguia trabalhar no mesmo povoado mais de dois ou três anos; deste modo, a minha primeira infância decorreu em diferentes povoados tchuvaches, tártaros e morduínos. Somente depois da morte de meu pai eu soube que, na juventude, ele se empolgara com a criação poética. Vários de seus poemas entraram em coletâneas tchuvaches.
Alguns anos atrás, escreveram numa revista tchuvache que ele era autor de um poema conhecido na tradição popular.
Depois da morte de meu pai, minha mãe contava que o admirável poeta tchuvache Vaslei Mita fora seu amigo próximo na faculdade operária. Ela me pedia que não lembrasse na escola o nome desse poeta: ele fora preso havia muito tempo, acusado de nacionalismo, e achavam que tinha morrido. Às vezes, aos domingos, me permitiam ir à feira, no povoado vizinho, onde Mita nascera. Eu corria para ver a casa em que ele tinha vivido.
Soube depois que Mita fora libertado em 1948 de um campo de trabalho e que, voltando ao povoado natal, empregou-se como guarda numa plantação de ervilha.
Eu me lembro de que meus amigos e eu roubávamos ervilhas nesse campo, mas não me lembro se o guarda nos enxotava. No outono do mesmo ano, Mita foi preso novamente e enviado mais uma vez para um campo de trabalho.
Em 1995, encontrei em Tcheboksári o "nosso Vaslei", como nós o chamávamos. Provavelmente, apenas B. L. Pasternak provocou em mim semelhante impressão de nobreza espiritual, tão rara e luminosa. É possível que justamente por isso eu tenha falado dele a Pasternak. As saudações de Boris Leonídovitch, que eu transmitia a Mita, pareciam conversas. Mita, por sua vez, respondia-lhe do mesmo jeito.
Em nosso primeiro encontro, Vaslei me contou que meu pai gostava muito de Púschkin e tinha sido um dos primeiros a traduzir seus versos para o tchuvache. O seu maior êxito nesse sentido foi a tradução de "A Gabrilíada'', que permaneceu inédita.
Eu estava preparado para essa notícia: lembrava-me de como meu pai cantarolava com frequência aqueles versos de Púschkin: "A tempestade cobre o céu de treva [ ... ]" lembro-me também de que, ficando em casa sozinho, eu tinha medo do retrato de Gógol, pendurado acima do armário de livros.
Meu pai chegou a ser o primeiro leitor de meu primeiro texto. Isso foi na Carélia, no outono de 1940. Voltando com minha mãe da mata, ficara surpreendido com uma árvore, que apenas começava a amarelar, em meio às outras, já desnudadas para o inverno. Minha mãe disse-me algo sobre a especial resistência daquela árvore. O pequeno relato, escrito por mim sobre esse episódio, deixou meu pai muito contente. Ele deu a sua opinião, como se fosse um voto. Essa seriedade ingênua se revelou mais efetiva bem posteriormente.
Desde criança, durante muito tempo eu fiz versos, que testemunhavam mais um respeito pela literatura como tal, que uma dedicação eficiente a algo sério, formulado de viva voz. Isso continuou por muito tempo, até os anos cinquenta. No entanto, eu sou grato a algo pouco numeroso e destituído de pretensão que despertou em minha primeira infância o meu interesse pela literatura.
Meu pai foi morto em combate em 1943, nas proximidades de Smolénsk. Mita faleceu em 1957 em seu povoado natal; seu enterro, acompanhado por verdadeira multidão, foi algo inusitado na Tchuváchia.
Voltando da Carélia, residimos em nosso povoado, no sul da Tchuváchia. Havia ali duzentas casas, deixaram de voltar da guerra para lá perto de trezentos homens. Falando daqueles anos, eu não posso deixar de me referir ao trabalho penoso dos habitantes, à fome de 1946 e aos meus colegas de classe, muitos dos quais não conseguiram concluir o curso secundário.
No povoado havia poucos livros, logo eles estavam todos lidos. Lembro-me de um caso: pedi à direção do kolkhozbrochuras quando estivessem sobrando. Ficou- me na memória uma delas: instruções para o combate ao gorgulho nos depósitos. Era difícil também conseguir livros na sede do distrito, onde eu depois cursei a escola normal. Até o outono de 1958, eu não tinha lido nenhum poeta russo do século xx além de Maiakóvski.
Esses anos e os seguintes ligam-se em minha memória, viva e dramaticamente, até à dor, com a imagem de minha mãe. Sua morte prematura coincidiu com o período em que fui vítima de ataques violentos na imprensa e em manifestações verbais. Minha mãe era meu único amigo, que compreendia plenamente as razões pelas quais eu defendia tenazmente minha concepção do dever de criação.
O seu comportamento no cotidiano lembrava o aperfeiçoamento moral de um artista. A seriedade e o que havia de profundo em seu íntimo, a relação inquieta com tudo o que havia de vulgar e superficial destacavam-na dos demais, que me cercavam desde a infância.
O meu avô materno foi o último sacerdote pagão de nosso povoado, esta atribuição era transmitida por herança. Minha mãe conhecia bem os ritos pagãos, que eram recusados, mas não proibidos pela Igreja. Ela e sua irmã conheciam muitas orações e esconjuras pagãos, minha mãe os lia frequentemente a meu pedido. É possível que esses ritmos, que se gravaram por muito tempo em minha memória, me tenham preparado para meu ulterior encantamento com os versos livres de Mikhail Séspel, o mais talentoso dos poetas tchuvaches.
Passei a ser publicado em 1949, escrevi muito durante meu curso na escola de pedagogia. E difícil descobrir algo válido em meus versos daqueles anos.
Vou falar sucintamente sobre o período ulterior de minha vida, já mais próximo de nós. Ingressei em 1958 no instituto literário de Moscou. Assisti a aulas ministradas por V. B. Schklóvski, V. F. Asmus, S. M. Bondi, participei dos seminários de M. Svietlóv. E, pensando no início de uma autoconsciência séria, eu sempre lembro em primeiro lugar de Mon coeur mis a nu (Meu Coração Desnudado) de Baudelaire e O Nascimento da Tragédia de Nietzsche.
Em 1956, eu conheci B. L. Pasternak, a relação amistosa comigo foi mantida pelo poeta até sua morte. Ao contrário de opiniões expressas frequentemente, tenho certeza de que a poética de Pasternak não exerceu influência sobre mim. E sobre a influência de sua personalidade, extraordinariamente forte e inesquecível, eu só poderia falar depois de me preparar como criador. A estrutura dos meus versos da juventude está ligada com a produção da mocidade de Maiakóvski.
Para caracterizar meus versos desse período, vou transcrever um trecho do prefácio que escrevi para eles mais tarde:
"Nos últimos anos, pensando na criação poética em termos de desenvolvimento dos recursos poéticos, adivinhando a diferença entre os que constroem e os que refletem, eu não procurei voltar aos meus primeiros versos. Refletiram-se neles aqueles traços de juventude que, numa idade mais madura, começam a parecer perniciosos para a arte. Acrescentou-se algo pessoal ao romantismo inerente aos versos juvenis: o trabalho com o verso aparecia para mim, antes de tudo, como a obtenção de material poético. O olhar de fora sobre a língua russa, que me ajudou nos primeiros tempos, tinha que desaparecer.
Eu escrevo em russo desde 1960. O primeiro leitor que aprovou os meus textos foi Nazim Hikmet, que já me havia aconselhado, assim como Pasternak, a escrever nessa língua".
(Escrito em russo para a revista tcheca Svet Sovetu)
Tradução:: Boris Schaiderman; ilustração: "Autorretrato", G. Aigui.
In Guenádi Aigui – Silêncio e Clamor; Boris Schaiderman e Jerusa Pires Ferreira (orgs.). São Paulo: Perspectiva, 2011.
Lançamento: dia 27 de abril de2011, quarta-feira, às 18:30, no Auditório superior do TUCA, Rua Monte Alegre, 1024 – Perdizes (São Paulo,SP); com leitura de poemas e mesa-redonda com Amálio Pinheiro, Nelson Ascher, Elena Vássina e Sergio Kon; coordenação: Jerusa Pires Ferreira.
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