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"Rio 40 graus / Cidade maravilha
Purgatório da beleza e do caos" 1
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Pouco bucólica é a cena representada na oval
“Pesca da Baleia” de Leandro Joaquim. O espetáculo
desses monumentais mamíferos, relacionável à agonia
da indústria pesqueira2, é balizado pelas fortificações
que pontuam a baía de Guanabara. Destacadas na imagem, essas edificações
são signos da presença humana que remetem à cultura
da guerra, à lógica de complementaridade entre construção
e destruição que determina a formação do Rio
de Janeiro.
A baía de Guanabara foi o berço de uma cultura da violência,
lugar onde não havia a “paz da Natureza sem gente”,
no dizer de Alberto Caeiro3. Além do extermínio dos índios
e da expulsão das baleias, houve a destruição da
paisagem para construção da civilização luso-brasileira:
não só a paisagem pré-existente, denominada como
natural para escamotear o desprezo pela cultura indígena, mas,
também, a que se criou sobre essa primeira intervenção,
abrindo um processo contínuo de destruição e construção
de referências culturais.
Hoje, como ontem, a construção da paisagem conta com métodos
destrutivos. Promovida tanto pelos agentes do desenvolvimentismo progressista
quanto pelos especuladores imobiliários, o arrasamento físico
de lugares e edifícios tem como par – supostamente antitético,
mas em grande medida complementar – a exploração visual
da cidade, que produz incessantemente livros, exposições
e objetos. Respaldados pelos álibis gastos da “preservação
da memória” e do “resgate da tradição”,
boa parte dos editores e curadores fazem dinheiro fácil atendendo
a um consumismo nostálgico do Rio que se foi. Esses especuladores
iconográficos vasculham as reservas técnicas dos arquivos,
bibliotecas e museus para exibir imagens que repetem ad nauseum
a mesma equação composta por arquitetura, água, terra
e ar. Céus espetaculares, montanhas grandiosas, planícies
mais ou menos curtas, oceano, baía ou lagoa, com ou sem edifícios,
sucedem-se em telas, gravuras e fotos, impondo um paradigma de beleza.
Dessa prática reiterada, impositiva, sobressaem o Pão de
Açúcar e o Corcovado como ícones principais, mais
meia dúzia de coadjuvantes. Gerados por uma cultura nada solar
e enquadrados na visualidade enganosa dos cartões postais, esses
emblemas pouco revelam o sol renitente, o calor exasperador, a umidade
corrosiva; escondem mesmo a realidade social sombria.
Sobre o resto paira o silêncio, o esquecimento mais ou menos voluntário.
Maria Graham, a seu tempo, achou por bem registrar sua visão do
Campinho; o desenho permanece engavetado, o lugar ainda espera que alguém
vá cotejar a configuração atual com a anterior e,
quem sabe, explicar o que ali ocorreu. Thomas Ender também se dedicou
a olhar o interior da cidade, legando ao futuro cenas bucólicas
do Catumbi, do Estácio e de São Cristóvão,
entre outros recantos; seus desenhos podem ser expostos e publicados,
já os desastres urbano-arquitetônicos que são os elevados
da avenida Paulo de Frontin e da rua Bela, ou o Sambódromo, desses
ninguém quer mais falar.
Machado de Assis associava a festa da Glória à da Penha,
articulando paisagens físicas e culturais; no dizer dele, a “festa
da Glória é a Penha elegante, do vestido escorrido, da comenda
e do claque; a Penha é a Glória da rosca no chapéu,
garrafão ao lado, ramo verde na carruagem e turca no cérebro.”
Já em uma compilação recente de seus escritos, a
Penha pode até merecer uma foto, mas não um verbete como
os que são feitos, por exemplo, para o Jardim Botânico e
o Passeio Público, a Rua do Ouvidor e o Largo da Carioca4.
O Rio de Janeiro merece um conceito de paisagem mais amplo, que subsidie
uma reflexão mais abrangente capaz de abarcar outros objetos e
temas, outras práticas e regiões. Mesmo operando com os
clichês, sua reincidência pode ser observada no sabão
em barra com o perfil do Corcovado ou na toalha de praia com a estampa
da mulata contra a montanha, abrindo uma análise menos comprometida
com o mercado de antigüidades. No sentido ainda de uma história
da arte inclusiva, os botequins, com suas pinturas com paisagens ficcionais
e alusivas, também aguardam uma visita, uma visada ao menos interessada,
se não afetiva. Como esses redutos boêmios, outros lugares
merecem a atenção de quem se interessa pelo Rio e sua paisagem.
Como o poder público, a maioria dos pesquisadores esquecem, quase
sempre, tudo o que está além do Centro e da zona Sul. A
cidade resulta circunscrita, derivada de uma mentalidade limitada e restritiva
que se não está comprometida, ao menos está afinada
com a especulação imobiliária. Assim, como variações
da equação dominante, vale a pena olhar e pensar a igreja
de Nossa Senhora da Pena, em Jacarepaguá, ou o Santuário
da Penha, que domina o entorno cotidianamente, marca a história
do samba e o calendário carioca com sua festa, além de produzir
farta quinquilharia – desde ex-votos até pratos, chaveiros
e postais, que produzem uma iconografia renitente apesar de esquecida.
Um entendimento da paisagem como constructo cultural, em vez
de sinônimo de natureza, permite incluir outros marcos urbanos:
a Quinta da Boa Vista, a Pedra do Sal, as linhas férreas que estruturam
a maior parte da cidade e as rotas diárias da maioria dos habitantes,
o Estádio Mário Filho – o internacional Maracanã
–, o Mercadão de Madureira, com suas conexões transatlânticas
e místicas, a estátua de Iemanjá em Sepetiba com
sua festa a cada novo fevereiro, os conjuntos habitacionais serpenteados
de Benfica, da Gávea e de Guadalupe, vários “buracos”
– o do Lume, no Centro, o do Padre, no Engenho Novo, e os do Lacerda,
em Copacabana e no Jacaré –, entre outros. Em meio a muitas
referências musicais à cidade inteira ou a alguns de seus
bairros como a Lapa e a Pavuna, podem ser lembradas algumas citações
de objetos, edifícios e lugares cariocas: a chaminé de barro
por Noel Rosa, o barracão de zinco por Herivelto Martins, as vitrines
por Chico Buarque de Hollanda, o Hotel Marina por Antonio Cícero,
o clube Mackenzie por Fernanda Abreu e o coreto de Quintino por Caetano
Veloso5.
É importante considerar, também, as práticas culturais
que não só transformam mas efetivamente constituem e caracterizam
a paisagem: o carnaval na Cinelândia, em Vila Isabel ou na Praça
Onze (Sambódromo, Terreirão e adjacências); as peladas
de futebol no Aterro do Flamengo, em Cavalcanti ou na Barra da Tijuca;
o estar na praia, seja em Ramos ou Copacabana, na Ilha do Governador ou
no Recreio dos Bandeirantes. Praia, futebol e carnaval – essa tríade
aponta imediatamente para as possibilidades de especulação
populista de tal ampliação do conceito de paisagem. Amplitude
que abre brecha para o relativismo acrítico. Desafios postos, riscos
a correr por quem quiser se contrapor ao elitismo destrutivo que tem orientado
a construção da paisagem carioca.
Roberto Conduru é historiador da arte e professor
do Instituto de Artes da UERJ.
Ilustração: Pesca da baleia na Baía de Guanabara, de Leandro Joaquim (fim do séc. XVIII, óleo s/ tela, 83x113 cm, Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro).
1. “Rio 40 Graus” de Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer.
2. A relação é feita por Luiz Fernando Franco em
“Lugar Comum” – texto cristalino, de formulação
transparente, multifacetado, articulado por arestas precisas e cortantes
– em paralelo ao qual uma primeira versão desse texto foi
produzida. O par (ainda inédito) foi produzido por encomenda do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
para integrar o dossiê a ser encaminhado à UNESCO propondo
o tombamento da paisagem carioca como patrimônio da humanidade.
3. Caeiro, Alberto. “O Guardador de Rebanhos”. In: Pessoa,
Fernando. Ficções do interlúdio. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p. 215.
4. Carrer, Aline. “Machado de Assis e o Rio de Janeiro: fragmentos
de uma realidade humana”. In: Martins, Carlos e Caleffi, Sandra
Regina. A paisagem carioca. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio
de Janeiro, 2000. p. 118-127. Em livro anterior – Carrer, Aline.
Rio de Assis: imagens machadianas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa
da Palavra, 1999. –, não é feita menção
à Penha, pois o Engenho Novo é o lugar mais distante a que
se chega.
5. Refiro-me, respectivamente, às seguintes canções:
“Três Apitos” de Noel Rosa, “Ave Maria no Morro”
de Herivelto Martins, “As Vitrines” de Chico Buarque de Hollanda,
“Virgem” de Marina Lima e Antonio Cícero, “Baile
da Pesada” de Fernanda Abreu e Rodrigo Maranhão e “Meu
Rio” de Caetano Veloso.
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