Sem Szeemann
Sheila Leirner

 

Cada vez sinto-me mais próxima da idéia de que, com o desaparecimento de Harald Szeemann, a idade de ouro das exposições excepcionais terminou ou entrou definitivamente em longa hibernação. Szeemann, morto há pouco mais de um ano, aos 71 anos, foi o grande mestre da orquestração das diversidades artísticas contemporâneas, o exemplo máximo do que constitui e significa o papel de um curador nos séculos 20 e 21. Exerceu uma função cujo vocábulo está completamente inflado, pois hoje qualquer um batiza-se “curador” e ele não significa mais nada.

Personalidade independente, com uma carreira coroada de êxitos, o crítico foi conhecido por sua aproximação inabitual da arte e sua capacidade de suscitar curiosidade por meio de uma utopia positiva, quase ingênua, da vida. Szeemann não era um teórico. E muito menos um conservador de museu. Embora tenha estudado história da arte, arqueologia e jornalismo, era um “crítico” na acepção verdadeira e revolucionária do termo, ou seja, aquele que está dentro da turbulência dos valores nos quais a arte se origina. Por isso, os artistas “históricos”, mas que pertenciam à sua longa experiência pessoal, sempre contribuíam à visão da arte contemporânea em suas mostras. Seu hábito era eleger um emblema para a leitura de toda a exposição e ele não parecia experimentar qualquer pudor em exibir os amigos com quem manteve trabalhos de colaboração, como Joseph Beuys.

Uma das características daquela grande personalidade é que ele era também radicalmente contra os guetos nacionais e estéticos. Sempre abolia os muros de separação entre as obras, mesmo entre artistas jovens e consagrados, exigindo uma confrontação global. Nós, brasileiros, sabemos que isso já foi proposto em algumas bienais de São Paulo dos anos 80, até o momento em que esses mesmos guetos e cubículos recomeçaram a se formar...

O seu testemunho, ademais, era sempre ambivalente. Por um lado, apresentava idéias ardentes para a análise e a amostragem a partir das próprias contingências da arte e da sua situação dentro da ótica da globalização. E por outro lado, criava uma “evenstructure” intensa, na qual se revelavam as tendências importantes da estética e da linguagem na criação atual.

Se os curadores que se levam demasiadamente a sério tivessem feito um estágio com Harald Szeemann, responsável pelas mais importantes exposições do mundo, entre as quais a Documenta de 1972 e as 48 e 49 Bienais de Veneza (1999 e 2001), eles não só imaginariam exposições mais estimulantes, como certamente aprenderiam a conquistar a simpatia geral do meio artístico e da mídia. Pois ele, com a sua habitual simplicidade, humor e indiferença, era a antítese absoluta de muitos que vimos passar pelas instituições. As suas mostras sempre constituíram a celebração e o gozo da arte, explodindo em imagens e conquistando o público sob a estratégia criativa e analógica de uma visão “quente” e “presente” da criação artística.

Numa das declarações exclusivas para o Caderno 2, no qual colaborei durante 31 anos, Szeemann afirmou, por exemplo, que gostaria de ver a Bienal de Veneza, “velha mãe centenária de todas as bienais, transformada numa jovem e sedutora senhora”. Segundo ele, a manifestação “devia ser intensa, feita de gestos grandiosos, mas também de situações mais íntimas e calmas, onde as questões inquietantes sobre o passado ou o futuro dessem lugar à afirmação da força regozijadora do presente”.

“Os artistas de hoje”, disse Szeemann, “são abertos, cheios de frescor, positivos – alguns não hesitam em se definir como ‘giving artists’. Eles encarnam um presente vivido mais intensamente, como se tratasse de uma dimensão futura”. Tratava-se, segundo ele, de ultrapassar radicalmente o espaço do “cubo branco” e de substituir o “tema” por uma “dimensão”, sempre tendo em vista “a história”.

Contudo, Harald Szeemann andava sempre bem armado para as críticas. Porque certos heróis não estavam presentes em suas mostras? Porque os continentes nunca eram representados de maneira eqüitativa? Porque os países não estavam apresentados sob o critério de unidade espacial? Naturalmente, precisava-se entender que, para um curador visionário, entusiasta e generoso como ele, as escolhas não nasciam necessariamente de um critério coerente. Eram frutos da sua intuição e das suas emoções e isso nem todos tinham (e ainda não tem) preparo para aceitar.

Uma vez, numa entrevista coletiva, presenciei a interpelação maliciosa de uma jornalista, incomodada com o seu “estilo e personalidade próprios”. Ele concordou com ela, mas disse que “era a dimensão dada pelos artistas o que definia a sua concepção e a sua escolha”. Segundo o curador, “a cada dia nascem novos conflitos por razões étnicas, religiosas e de supremacia política. Hoje os artistas reagem de forma diferente de há dez anos. Os tempos não exigem mais uma afirmação espasmódica da própria identidade, mas invocam o que é eterno no homem, sobre a base das raízes locais, único fator que pode dar um peso à legitimação deste apelo”.

Na mesma entrevista, para espanto de alguns, Szeemann deixou claro também que para ele “figurativo e não figurativo são a mesma coisa, basta que a obra seja intensa”. Isto queria dizer igualmente que a luta centenária entre abstração e figuração estava, portanto, definitivamente arquivada. Mas, para ele, a noção de tempo e de espaço – e do espaço que torna-se tempo – também tinha se convertido em patrimônio comum. “Tanto e tão bem que os artistas”, dizia, “se liberam do poder da autonomia para dirigirem-se às aspirações comuns da humanidade”. Finalmente testemunhávamos uma ótica otimista!

Mas o entusiasmo de Harald Szeemann não parava aí. Tudo passava pelo seu crivo numa espécie de baile analógico onde o espírito de um movimento contagiava o outro e todos se comunicavam: arte povera, conceitual, arte sobre o esporte, fotografia, pintura, cinema, poesia etc. Faziam parte muitos desconhecidos singulares, descobertos nas viagens do curador pelo mundo, e artistas famosos cuja obra, ele confessava, “não sabia se ia ser boa daquela vez”. E quando apresentava dança, música, teatro e cinema estas linguagens deviam estar sempre conceitualmente entrelaçadas com as artes plásticas.

Creio que não seria exagero afirmar que a arte contemporânea nasceu em 1969, na Kunsthalle de Berna, engendrada sob a forma de uma exposição que se chamou “Quando as atitudes tornam-se forma” ou mais precisamente “When attitudes becomes form: live in your head”. Esta testemunhava uma nova forma desmaterializada de trabalho, onde o ato (ou o processo) de criação era tomado como obra de arte. Não foi uma lista de nomes, um conceito, um movimento ou uma tendência. Apenas “a atividade do artista”, como explicou na época o seu criador Harald Szeemann. Estavam lá Beuys, Buren, Merz, Weiner, Darboven, Hesse, Morris, Nauman, Oldenburg, Pistoletto, Serra e muitos outros.

Após esta experiência, Harald Szeemann tornou-se curador independente. Situando-se sempre nas fronteiras entre o estético, a sociologia e a etnologia, foi o poeta que via as suas exposições não como uma “interpretação plástica”, mas uma espécie de sociedade ideal. Curador no verdadeiro sentido da palavra, desenvolveu uma das mais brilhantes e extraordinárias trajetórias de que se tem notícia, em busca da arte total. Quem, hoje em dia, seria realmente capaz de esquecer, como ele, os pequenos “lucros” e projetar o futuro no presente tendo em vista apenas a afirmação da sua própria responsabilidade face à história?

Paris, junho de 2006