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No Rio de Janeiro contemporâneo há uma
figura lingüístico-afetiva que pontua freqüentemente
as relações sociais entre cariocas (ou entre um carioca
e um ‘estrangeiro’). Não saberia dizer desde quando
existe esse traço lingüístico, mas não me
lembro da linguagem carioca sem a sua presença constante. Trata-se
– e todo carioca ou qualquer pessoa que já esteve no
Rio o reconhecerá – do famigerado diálogo:
–“Rapaz, há quanto tempo!”
–“Pois é, que bom te ver!”
–“Poxa, a gente tinha que se falar mais!”
–“É mesmo, vou te ligar.”
–“Mas liga mesmo, pra gente se ver, botar o papo em dia.”
–“Não, pode deixar, vou ligar com certeza.”
–“Beleza, então, vou esperar. Adorei te ver!”
–“Eu também, te ligo então. Um grande abraço!”
Isso ou variações.
Pois para muitos cariocas, que já estão mais do que
familiarizados com o diálogo, e talvez sobretudo para os não-cariocas,
que constataram perplexos o encaminhamento futuro dessas promessas,
essa figura lingüística acaba por se configurar como uma
situação de constrangimento. Afinal, todos sabemos que
não haverá telefonema algum; todos, literalmente: a
começar pelos próprios personagens da conversa. E a
fórmula do constrangimento, já se disse, é precisamente
essa: todos sabem que todos sabem e entretanto ninguém o pode
admitir. Curiosas sutilezas sociais. O que impede que se desencubra
o não-dito do diálogo é que esse não-dito
é uma mentira: não haverá telefonema, um não
ligará para o outro, e vice-versa. Assim, o não-dito
é mantido e desenvolvido, cria-se uma conversa sustentando
a sua tensão: está plenamente configurada a situação
constrangedora.
Mas o que faz com que a situação seja por muitos experimentada
como constrangedora é justamente o entendimento desse não-dito,
dessa promessa que sabemos sem fundos (“te ligo, com certeza”)
como sendo uma mentira. Fulano disse que ia ligar, mas não
ligou: mentira, portanto. Pior: fulano prometeu que ia ligar, enfatizou,
assegurou, sublinhou a promessa com todas as inflexões e entonações
da convicção: mentira ainda mais grave, gravíssima.
Entretanto, tudo muda se pensarmos o recalcado do diálogo,
o não-dito, não como uma mentira, mas como um modo indireto
da verdade. Assim, o horizonte em que a promessa passa a ser verdadeira
não é mais a sua efetivação posterior,
mas o que, dentro dela, vibra afetivamente: “te ligo”
passa a significar “gosto de você”, “vou ligar
com certeza” traduz-se por “gosto muito de você”,
e assim sucessivamente, a intensidade afetiva aumentando à
proporção das entonações e expressões
de segurança. Fernando Pessoa dizia que “a linguagem
pode mentir, mas a voz não”. Ora, justamente, nesse fragmento
de carioquês a verdade está na voz, no afeto que nela
pulsa e se manifesta explicitamente. Mas, cabe então a pergunta:
por que engajar esse afeto em uma promessa sem fundos, que se sabe
não será cumprida? Por que comprometer sua verdade associando-o
a uma efetivação que não ocorrerá?
A origem dessa curiosa figura sócio-lingüístico-afetiva
é uma outra figura: uma sutil configuração da
amizade que costuma se formar numa das curvas que o tempo impõe
a determinadas amizades. Essa configuração ocorre quando
uma amizade intensa passa de um estado de intimidade diariamente atualizada
- conversas freqüentes, presença física constante,
confissões, vidas em permanente comunicação -
para um estado de amizade em que a distância se interpõe
e dispersa as trajetórias dos amigos, porém algo da
intimidade da outra configuração resiste a essa nova
forma e se mantém intenso, incólume à distância.
Esse “algo da intimidade” se transforma em um afeto perfeitamente
constante que, adormecido e escondido pela distância, emerge
efusivamente na presença do amigo. Afeto à distância.
Quase-intimidade que se evidencia, para deleite dos amigos, a cada
vez que o acaso propicia um encontro. Mas, em geral, os movimentos
divergentes das trajetórias de vida são irreversíveis,
na medida em que atingem o processo de subjetivação
de cada um dos amigos: os amigos já não são mais
os mesmos, pensam e sentem de forma diferente, são outros,
não podem ter a cumplicidade que tinham antes - não
da mesma forma. O que resiste, o afeto, é resultado de uma
intimidade de tal modo condensada que, por excesso, atingiu como que
uma existência própria, interpessoal, portanto imune
às mudanças de vida dos amigos.
Perde-se a intimidade, já não se sabe tão bem
da vida do outro, mas fica, incorruptível, o afeto, que emerge
efusivamente nos encontros fortuitos. Pois, justamente, é essa
consciência (que pode ser apenas intuída, porém
claramente) da perda irreversível da intimidade, da impossível
recuperação da amizade, que virá a produzir o
diálogo de que estamos tratando. O afeto é verdadeiro,
é uma positividade, mas há em sua formação
uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é:
telefonar seria um erro, seria apostar demasiadamente na improvável
recuperação do estado antigo da amizade. Doravante a
amizade é isso: o afeto efusivo, a alegria dos encontros fortuitos
- que entretanto tenderia a perder a efusão se se tentasse
um movimento restaurador. O recalcado do diálogo, o não-dito,
se forma nesse ponto: é que seria duro demais trazer à
tona o núcleo de perda e de impossibilidade que se encontra
na formação de um afeto tão positivo, tão
efusivamente manifestado. Opta-se por escondê-lo, e para tanto
faz-se necessário mascará-lo com a promessa da restauração:
“Vou te ligar”. Quanto maior a consciência - ou
a intuição - da impossibilidade, e de quanta perda ela
encerra, maior a necessidade de mascaramento: “Vou te ligar,
com certeza”.
Assim, curiosamente, quanto maior a mentira, maior a verdade. A verdade
do afeto não se subordina à efetivação
da promessa, mas se manifesta, indiretamente, através dela:
“Vou te ligar, com certeza” significa apenas “Gosto
muito de você”, e o não cumprimento da promessa
significa o mascaramento protetor de um afeto delicado. Pois a verdade
nua e crua, desprotegida, poderia ser muito... constrangedora: “Rapaz,
há quanto tempo! Veja, gosto de você, fomos muito íntimos,
mas hoje somos bem diferentes, não acredito que possamos retomar
a antiga cumplicidade, por isso vamos apenas gozar desse momento de
alegria fortuita, sem fazer promessas que não poderemos cumprir.”
Pois o constrangimento também surge de um excesso de dizer,
e não apenas de um não-dito gritante. Na verdade, penso,
nosso famigerado diálogo carioca só se torna constrangedor
se sua verdade nuclear - o afeto incorruptível - não
for forte o suficiente para sustentar, à base de cumplicidade,
a tensão do mascaramento. Quando o mascaramento é bem
feito o diálogo transcorre sob intensa e efêmera efusão
afetiva - e somente na despedida passa por nós a brisa de uma
melancolia. |
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