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![]() O título deste ensaio é “Poesia e filosofia”
e, no entanto, até agora praticamente só falei de poesia.
A razão disso é que tomo a filosofia como o oposto complementar
da poesia, de modo que, tendo explicado o que penso desta, resulta mais
fácil explicar o que penso daquela. Para tanto, permito-me abusar
de mais um conceito lógico-lingüístico. Refiro-me ao
de metalinguagem e linguagem-objeto; ou melhor, metadiscurso
e discurso-objeto. Discurso-objeto, como se sabe, é aquele
sobre o qual um outro discurso fala, e se opõe a metadiscurso,
que é aquele que fala sobre outro. Tomemos um enunciado como “a
porta da sala está aberta”. Se digo, por exemplo, “o
enunciado ‘a porta da sala está aberta’ é composto
de seis palavras”, o que acabo de dizer é um metadiscurso
em relação ao discurso-objeto “a porta está
aberta”. Mas um metadiscurso pode vir a ser um discurso-objeto em
relação a outro discurso que fale dele. Se digo, por exemplo,
“traduzi para o inglês o enunciado ‘o enunciado a
porta da sala está aberta é composto de seis palavras’”,
então o que era antes um metadiscurso é agora um discurso-objeto
em relação ao discurso que começa com “traduzi
para o inglês...”. Pois bem, denomino discurso-objeto
terminal aquele cuja função não é nem
falar sobre discurso algum nem falar sobre coisa alguma. Assim é
o objeto da língua que é o poema enquanto poema, tal como
o mostrei aqui.
Fichte se inspira em considerações kantianas como essa para explicar o que toma como o verdadeiro espírito, às vezes contra a letra, da obra do próprio Kant. No que toca a Descartes, Heidegger tem razão ao afirmar que “a consciência histórica da questão autêntica deve esforçar-se por pensar o sentido que Descartes mesmo tencionou para suas proposições e conceitos, mesmo quando para tanto se torne necessário traduzir os enunciados dele mesmo para outra ‘língua’”. Ora, como já se viu, seria impensável falar tal coisa a respeito das obras de um poeta considerado como poeta. Enquanto, no caso destas, o que importa é o seu valor estético (no sentido que determinei há pouco) e não o que o poeta pense sobre o mundo, no caso de uma obra filosófica o que importa não é o seu valor estético, mas a intuição filosófica que revela, a doutrina que defende, o conceito que elabora. A obra de filosofia expõe as intuições, as doutrinas, os conceitos do seu autor, mas o faz apenas parcialmente e em palavras arbitrárias. Quando nos debruçamos sobre ela, não é pelo seu valor intrínseco, como quando nos debruçamos sobre um poema, mas, ao contrário, para descobrir o que pensa o seu autor; e queremos descobrir o que pensa o seu autor não com a finalidade precípua de conhecer esse autor, mas porque nos interessamos pelas questões filosóficas de que ele trata. Ao lê-lo e interpretá-lo, queremos, em última análise, aprofundar a nossa investigação de questões pertencentes ao domínio da filosofia. Assim como nenhuma filosofia, nenhum metadiscurso, jamais é capaz de parafrasear o discurso-objeto que é o poema, nenhum discurso-objeto, nenhum poema é capaz de falar sobre coisa alguma ou discurso algum sem deixar de ser poema; nem é capaz de falar sobre o metadiscurso terminal que é a filosofia, sem deixar de ser poema e passar a ser filosofia. Ou melhor: quando lemos um poema como metadiscurso, deixamos de lê-lo como poema. Na condição de poema, o que ele diz sobre alguma coisa não é um fim, mas apenas um meio. Os discursos sobre um texto poético se multiplicam justamente porque o que diz não pode ser separado das palavras com que o diz, de modo que todas as demais palavras com as quais tentamos exprimi-lo ou explicá-lo resultam sempre insuficientes; já os discursos sobre um texto filosófico se multiplicam porque o que ele tenciona dizer não é inteiramente expresso pelas palavras com as quais o diz, de modo que sempre pode e deve ser expresso e explicado melhor por outras palavras. As grandes intuições filosóficas são poucas e aqueles que as têm são grandes pensadores. São essas intuições que procuramos capturar, quando voltamos aos textos originais e primários, ainda que textos posteriores e secundários já os tenham explicado melhor, no todo ou em alguns dos seus aspectos. É que não voltamos àqueles textos como a um poema que sabemos ser insubstituível e do qual cada uma das nossas leituras é sempre inadequada ou insuficiente, mas, ao contrário, como a um texto que é ele mesmo inadequado ao que tenciona dizer, mas que, embora inadequado, é de todo modo o texto de um grande pensador, isto é, de alguém que supomos ter ido muito longe em pensamento, ainda mais longe do que aquilo que conseguiu exprimir por escrito e do que aquilo que, inadequadamente expresso por escrito, foi mais bem explicado por outros. Relemos tais textos como indicações, indícios ou sintomas de algo que eles mesmos não chegaram a exprimir adequadamente. Esses dois pólos do pensamento, poesia e filosofia,
não podem ser reduzidos um ao outro. Já Platão falava
da “velha querela” entre a filosofia e a poesia, e dela participou,
do lado da filosofia. Hoje, é mais freqüente tentar-se reduzir
os discursos filosóficos a espécies de poemas que se desconhecem
enquanto tais. Mas é necessário que haja tanto o discurso-objeto
terminal – a poesia – quanto o metadiscurso terminal: a filosofia.
É esta que ambiciona conhecer a verdade. Como todo discurso sobre
a filosofia é filosófico, de modo que toda tentativa de
negar à filosofia a possibilidade de conhecer a verdade é
uma tentativa filosófica de negar a filosofia, essa tentativa incorre
no que se convencionou chamar de autocontradição performativa.
Assim, a filosofia que negue a si própria a possibilidade de conhecer
a verdade está, ipso facto, negando a si própria
a possibilidade de enunciar tal “verdade”. Logicamente, não
resta à filosofia senão rejeitar esse suicídio e
afirmar sua própria potência. É importante que o faça,
tanto para si própria quanto para a poesia, pois, se esta constitui
a afirmação radical e imanente do mundo fenomenal, aleatório,
finito, aquela é o núcleo do empreendimento moderno de crítica
radical e sistemática das ilusões e das ideologias que pretendem
congelar ou cercear a vida e, conseqüentemente, congelar e cercear
a própria poesia.
KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. In:
-----. Werke, vols.3-4. Berlin: Preussische Akademie der Wissenschaften,
1902ss. Reimpressão, Berlim: Walter de Gruyter, 1968. p.B.371. |
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