Poesia e filosofia
Antonio Cicero

 

O título deste ensaio é “Poesia e filosofia” e, no entanto, até agora praticamente só falei de poesia. A razão disso é que tomo a filosofia como o oposto complementar da poesia, de modo que, tendo explicado o que penso desta, resulta mais fácil explicar o que penso daquela. Para tanto, permito-me abusar de mais um conceito lógico-lingüístico. Refiro-me ao de metalinguagem e linguagem-objeto; ou melhor, metadiscurso e discurso-objeto. Discurso-objeto, como se sabe, é aquele sobre o qual um outro discurso fala, e se opõe a metadiscurso, que é aquele que fala sobre outro. Tomemos um enunciado como “a porta da sala está aberta”. Se digo, por exemplo, “o enunciado ‘a porta da sala está aberta’ é composto de seis palavras”, o que acabo de dizer é um metadiscurso em relação ao discurso-objeto “a porta está aberta”. Mas um metadiscurso pode vir a ser um discurso-objeto em relação a outro discurso que fale dele. Se digo, por exemplo, “traduzi para o inglês o enunciado ‘o enunciado a porta da sala está aberta é composto de seis palavras’”, então o que era antes um metadiscurso é agora um discurso-objeto em relação ao discurso que começa com “traduzi para o inglês...”. Pois bem, denomino discurso-objeto terminal aquele cuja função não é nem falar sobre discurso algum nem falar sobre coisa alguma. Assim é o objeto da língua que é o poema enquanto poema, tal como o mostrei aqui.

Por outro lado, denomino metadiscurso terminal aquele que pode ter por objeto outros discursos e outras coisas, mas que não pode, ele mesmo, ser objeto de nenhum discurso fora de si, pois o único discurso que o tem por objeto é ele mesmo. Assim é o ato de fala que é a filosofia. Em outras palavras, não é possível falar sobre – ou mesmo falar contra – a filosofia a partir de um discurso que não seja, ele mesmo, filosofia.

Alguém talvez objete que um gramático, por exemplo, poderia estudar o Discurso do método, de Descartes, sem que o seu estudo seja considerado filosofia. É verdade, mas então o seu objeto não seria o Discurso do método enquanto filosofia. O seu objeto não seria filosófico. À medida que fosse, então também o seu estudo seria filosófico.

Enquanto o valor da poesia não é dado pelo que fale sobre coisa alguma, pois a sua função, enquanto poema, não é falar sobre coisa alguma, o valor do discurso filosófico está no que fala sobre as coisas, mesmo quando a coisa de que fala seja a própria filosofia. O discurso filosófico é, como eu disse, um ato de fala. Ora, um ato de fala pode ser desempenhado com diferentes palavras. Assim, O Discurso do método é uma obra estilisticamente admirável, mas, do ponto de vista filosófico, as Meditações sobre filosofia primeira, embora menos impressionantes do ponto de vista literário, são mais importantes, pois desenvolvem mais profunda e radicalmente as concepções do autor. Vou mais longe ainda: se um poema é, a rigor, intraduzível e imparafraseável, o discurso filosófico é tão traduzível e parafraseável que Kant se sente autorizado a afirmar que

não é nada incomum, através da comparação dos pensamentos que um autor exprime sobre seus pensamentos, compreendê-lo até melhor do que ele mesmo se compreende, na medida em que não determinou suficientemente o seu conceito e, com isso, ocasionalmente falou, ou mesmo pensou, contra sua própria intenção.

Fichte se inspira em considerações kantianas como essa para explicar o que toma como o verdadeiro espírito, às vezes contra a letra, da obra do próprio Kant. No que toca a Descartes, Heidegger tem razão ao afirmar que “a consciência histórica da questão autêntica deve esforçar-se por pensar o sentido que Descartes mesmo tencionou para suas proposições e conceitos, mesmo quando para tanto se torne necessário traduzir os enunciados dele mesmo para outra ‘língua’”.

Ora, como já se viu, seria impensável falar tal coisa a respeito das obras de um poeta considerado como poeta. Enquanto, no caso destas, o que importa é o seu valor estético (no sentido que determinei há pouco) e não o que o poeta pense sobre o mundo, no caso de uma obra filosófica o que importa não é o seu valor estético, mas a intuição filosófica que revela, a doutrina que defende, o conceito que elabora. A obra de filosofia expõe as intuições, as doutrinas, os conceitos do seu autor, mas o faz apenas parcialmente e em palavras arbitrárias. Quando nos debruçamos sobre ela, não é pelo seu valor intrínseco, como quando nos debruçamos sobre um poema, mas, ao contrário, para descobrir o que pensa o seu autor; e queremos descobrir o que pensa o seu autor não com a finalidade precípua de conhecer esse autor, mas porque nos interessamos pelas questões filosóficas de que ele trata. Ao lê-lo e interpretá-lo, queremos, em última análise, aprofundar a nossa investigação de questões pertencentes ao domínio da filosofia.

Assim como nenhuma filosofia, nenhum metadiscurso, jamais é capaz de parafrasear o discurso-objeto que é o poema, nenhum discurso-objeto, nenhum poema é capaz de falar sobre coisa alguma ou discurso algum sem deixar de ser poema; nem é capaz de falar sobre o metadiscurso terminal que é a filosofia, sem deixar de ser poema e passar a ser filosofia. Ou melhor: quando lemos um poema como metadiscurso, deixamos de lê-lo como poema. Na condição de poema, o que ele diz sobre alguma coisa não é um fim, mas apenas um meio. Os discursos sobre um texto poético se multiplicam justamente porque o que diz não pode ser separado das palavras com que o diz, de modo que todas as demais palavras com as quais tentamos exprimi-lo ou explicá-lo resultam sempre insuficientes; já os discursos sobre um texto filosófico se multiplicam porque o que ele tenciona dizer não é inteiramente expresso pelas palavras com as quais o diz, de modo que sempre pode e deve ser expresso e explicado melhor por outras palavras.

As grandes intuições filosóficas são poucas e aqueles que as têm são grandes pensadores. São essas intuições que procuramos capturar, quando voltamos aos textos originais e primários, ainda que textos posteriores e secundários já os tenham explicado melhor, no todo ou em alguns dos seus aspectos. É que não voltamos àqueles textos como a um poema que sabemos ser insubstituível e do qual cada uma das nossas leituras é sempre inadequada ou insuficiente, mas, ao contrário, como a um texto que é ele mesmo inadequado ao que tenciona dizer, mas que, embora inadequado, é de todo modo o texto de um grande pensador, isto é, de alguém que supomos ter ido muito longe em pensamento, ainda mais longe do que aquilo que conseguiu exprimir por escrito e do que aquilo que, inadequadamente expresso por escrito, foi mais bem explicado por outros. Relemos tais textos como indicações, indícios ou sintomas de algo que eles mesmos não chegaram a exprimir adequadamente.

Esses dois pólos do pensamento, poesia e filosofia, não podem ser reduzidos um ao outro. Já Platão falava da “velha querela” entre a filosofia e a poesia, e dela participou, do lado da filosofia. Hoje, é mais freqüente tentar-se reduzir os discursos filosóficos a espécies de poemas que se desconhecem enquanto tais. Mas é necessário que haja tanto o discurso-objeto terminal – a poesia – quanto o metadiscurso terminal: a filosofia. É esta que ambiciona conhecer a verdade. Como todo discurso sobre a filosofia é filosófico, de modo que toda tentativa de negar à filosofia a possibilidade de conhecer a verdade é uma tentativa filosófica de negar a filosofia, essa tentativa incorre no que se convencionou chamar de autocontradição performativa. Assim, a filosofia que negue a si própria a possibilidade de conhecer a verdade está, ipso facto, negando a si própria a possibilidade de enunciar tal “verdade”. Logicamente, não resta à filosofia senão rejeitar esse suicídio e afirmar sua própria potência. É importante que o faça, tanto para si própria quanto para a poesia, pois, se esta constitui a afirmação radical e imanente do mundo fenomenal, aleatório, finito, aquela é o núcleo do empreendimento moderno de crítica radical e sistemática das ilusões e das ideologias que pretendem congelar ou cercear a vida e, conseqüentemente, congelar e cercear a própria poesia.

Segmento final do ensaio Poesia e filosofia:
in Finalidades sem fim. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.

Capa: Angelo Venosa sobre Body, fruit, Earth (1991/93), obra de Antony Gormley.

KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. In: -----. Werke, vols.3-4. Berlin: Preussische Akademie der Wissenschaften, 1902ss. Reimpressão, Berlim: Walter de Gruyter, 1968. p.B.371.
FICHTE, J.G., Zweite Einleitung in die Wissenschaftslehre. In: FICHTE, I., (org.). ----- . Sämmtliche Werke, vol.1. Berlim: Veit& Com., 1845-6. p.479, nota. Disponível em Fichte im Kontext, vol.2. Berlim: Karsten Worm Info-SoftWare, 1999. CD-ROM.
HEIDEGGER, M. Der europäische Nihilismus. In: ----- . Nietzsche, vol.2. Pfullingen: Neske, 1961. p.163.