A destruição como princípio
Roberto Conduru

 

"Rio 40 graus / Cidade maravilha
Purgatório da beleza e do caos" 1

Pouco bucólica é a cena representada na oval “Pesca da Baleia” de Leandro Joaquim. O espetáculo desses monumentais mamíferos, relacionável à agonia da indústria pesqueira2, é balizado pelas fortificações que pontuam a baía de Guanabara. Destacadas na imagem, essas edificações são signos da presença humana que remetem à cultura da guerra, à lógica de complementaridade entre construção e destruição que determina a formação do Rio de Janeiro.

A baía de Guanabara foi o berço de uma cultura da violência, lugar onde não havia a “paz da Natureza sem gente”, no dizer de Alberto Caeiro3. Além do extermínio dos índios e da expulsão das baleias, houve a destruição da paisagem para construção da civilização luso-brasileira: não só a paisagem pré-existente, denominada como natural para escamotear o desprezo pela cultura indígena, mas, também, a que se criou sobre essa primeira intervenção, abrindo um processo contínuo de destruição e construção de referências culturais.

Hoje, como ontem, a construção da paisagem conta com métodos destrutivos. Promovida tanto pelos agentes do desenvolvimentismo progressista quanto pelos especuladores imobiliários, o arrasamento físico de lugares e edifícios tem como par – supostamente antitético, mas em grande medida complementar – a exploração visual da cidade, que produz incessantemente livros, exposições e objetos. Respaldados pelos álibis gastos da “preservação da memória” e do “resgate da tradição”, boa parte dos editores e curadores fazem dinheiro fácil atendendo a um consumismo nostálgico do Rio que se foi. Esses especuladores iconográficos vasculham as reservas técnicas dos arquivos, bibliotecas e museus para exibir imagens que repetem ad nauseum a mesma equação composta por arquitetura, água, terra e ar. Céus espetaculares, montanhas grandiosas, planícies mais ou menos curtas, oceano, baía ou lagoa, com ou sem edifícios, sucedem-se em telas, gravuras e fotos, impondo um paradigma de beleza.

Dessa prática reiterada, impositiva, sobressaem o Pão de Açúcar e o Corcovado como ícones principais, mais meia dúzia de coadjuvantes. Gerados por uma cultura nada solar e enquadrados na visualidade enganosa dos cartões postais, esses emblemas pouco revelam o sol renitente, o calor exasperador, a umidade corrosiva; escondem mesmo a realidade social sombria.

Sobre o resto paira o silêncio, o esquecimento mais ou menos voluntário. Maria Graham, a seu tempo, achou por bem registrar sua visão do Campinho; o desenho permanece engavetado, o lugar ainda espera que alguém vá cotejar a configuração atual com a anterior e, quem sabe, explicar o que ali ocorreu. Thomas Ender também se dedicou a olhar o interior da cidade, legando ao futuro cenas bucólicas do Catumbi, do Estácio e de São Cristóvão, entre outros recantos; seus desenhos podem ser expostos e publicados, já os desastres urbano-arquitetônicos que são os elevados da avenida Paulo de Frontin e da rua Bela, ou o Sambódromo, desses ninguém quer mais falar.

Machado de Assis associava a festa da Glória à da Penha, articulando paisagens físicas e culturais; no dizer dele, a “festa da Glória é a Penha elegante, do vestido escorrido, da comenda e do claque; a Penha é a Glória da rosca no chapéu, garrafão ao lado, ramo verde na carruagem e turca no cérebro.” Já em uma compilação recente de seus escritos, a Penha pode até merecer uma foto, mas não um verbete como os que são feitos, por exemplo, para o Jardim Botânico e o Passeio Público, a Rua do Ouvidor e o Largo da Carioca4.

O Rio de Janeiro merece um conceito de paisagem mais amplo, que subsidie uma reflexão mais abrangente capaz de abarcar outros objetos e temas, outras práticas e regiões. Mesmo operando com os clichês, sua reincidência pode ser observada no sabão em barra com o perfil do Corcovado ou na toalha de praia com a estampa da mulata contra a montanha, abrindo uma análise menos comprometida com o mercado de antigüidades. No sentido ainda de uma história da arte inclusiva, os botequins, com suas pinturas com paisagens ficcionais e alusivas, também aguardam uma visita, uma visada ao menos interessada, se não afetiva. Como esses redutos boêmios, outros lugares merecem a atenção de quem se interessa pelo Rio e sua paisagem. Como o poder público, a maioria dos pesquisadores esquecem, quase sempre, tudo o que está além do Centro e da zona Sul. A cidade resulta circunscrita, derivada de uma mentalidade limitada e restritiva que se não está comprometida, ao menos está afinada com a especulação imobiliária. Assim, como variações da equação dominante, vale a pena olhar e pensar a igreja de Nossa Senhora da Pena, em Jacarepaguá, ou o Santuário da Penha, que domina o entorno cotidianamente, marca a história do samba e o calendário carioca com sua festa, além de produzir farta quinquilharia – desde ex-votos até pratos, chaveiros e postais, que produzem uma iconografia renitente apesar de esquecida.

Um entendimento da paisagem como constructo cultural, em vez de sinônimo de natureza, permite incluir outros marcos urbanos: a Quinta da Boa Vista, a Pedra do Sal, as linhas férreas que estruturam a maior parte da cidade e as rotas diárias da maioria dos habitantes, o Estádio Mário Filho – o internacional Maracanã –, o Mercadão de Madureira, com suas conexões transatlânticas e místicas, a estátua de Iemanjá em Sepetiba com sua festa a cada novo fevereiro, os conjuntos habitacionais serpenteados de Benfica, da Gávea e de Guadalupe, vários “buracos” – o do Lume, no Centro, o do Padre, no Engenho Novo, e os do Lacerda, em Copacabana e no Jacaré –, entre outros. Em meio a muitas referências musicais à cidade inteira ou a alguns de seus bairros como a Lapa e a Pavuna, podem ser lembradas algumas citações de objetos, edifícios e lugares cariocas: a chaminé de barro por Noel Rosa, o barracão de zinco por Herivelto Martins, as vitrines por Chico Buarque de Hollanda, o Hotel Marina por Antonio Cícero, o clube Mackenzie por Fernanda Abreu e o coreto de Quintino por Caetano Veloso5.

É importante considerar, também, as práticas culturais que não só transformam mas efetivamente constituem e caracterizam a paisagem: o carnaval na Cinelândia, em Vila Isabel ou na Praça Onze (Sambódromo, Terreirão e adjacências); as peladas de futebol no Aterro do Flamengo, em Cavalcanti ou na Barra da Tijuca; o estar na praia, seja em Ramos ou Copacabana, na Ilha do Governador ou no Recreio dos Bandeirantes. Praia, futebol e carnaval – essa tríade aponta imediatamente para as possibilidades de especulação populista de tal ampliação do conceito de paisagem. Amplitude que abre brecha para o relativismo acrítico. Desafios postos, riscos a correr por quem quiser se contrapor ao elitismo destrutivo que tem orientado a construção da paisagem carioca.


Roberto Conduru é historiador da arte e professor do Instituto de Artes da UERJ.

Ilustração: Pesca da baleia na Baía de Guanabara, de Leandro Joaquim (fim do séc. XVIII, óleo s/ tela, 83x113 cm, Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro).

1. “Rio 40 Graus” de Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer.
2. A relação é feita por Luiz Fernando Franco em “Lugar Comum” – texto cristalino, de formulação transparente, multifacetado, articulado por arestas precisas e cortantes – em paralelo ao qual uma primeira versão desse texto foi produzida. O par (ainda inédito) foi produzido por encomenda do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional para integrar o dossiê a ser encaminhado à UNESCO propondo o tombamento da paisagem carioca como patrimônio da humanidade.
3. Caeiro, Alberto. “O Guardador de Rebanhos”. In: Pessoa, Fernando. Ficções do interlúdio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 215.
4. Carrer, Aline. “Machado de Assis e o Rio de Janeiro: fragmentos de uma realidade humana”. In: Martins, Carlos e Caleffi, Sandra Regina. A paisagem carioca. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000. p. 118-127. Em livro anterior – Carrer, Aline. Rio de Assis: imagens machadianas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1999. –, não é feita menção à Penha, pois o Engenho Novo é o lugar mais distante a que se chega.
5. Refiro-me, respectivamente, às seguintes canções: “Três Apitos” de Noel Rosa, “Ave Maria no Morro” de Herivelto Martins, “As Vitrines” de Chico Buarque de Hollanda, “Virgem” de Marina Lima e Antonio Cícero, “Baile da Pesada” de Fernanda Abreu e Rodrigo Maranhão e “Meu Rio” de Caetano Veloso.