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Elenquemos aleatoriamente os nomes de alguns dos maiores
jogadores de futebol do mundo, em todos os tempos: Johann Cruyff,
Maradona, Di Stefano, Rummenigge, Roberto Baggio, Michel Platini,
Zinedine Zidane, Mario Kempes, Marco Van Basten, Puskas, Eusébio,
Stoichkov, e assim por diante. Agora elenquemos alguns dos nomes de
grandes craques do futebol brasileiro, sem, obviamente, qualquer pretensão
exaustiva: Didi, Vavá, Pelé, Garrincha, Tostão,
Zico, Romário, Rivelino, Gérson, Reinaldo, Rivaldo,
Robinho, Nilton Santos, Jairzinho, Falcão, etc. Salta aos olhos
o fato de que, diferentemente do que se passa com os jogadores estrangeiros,
chamamos a maioria dos nossos craques por apelidos ou diminutivos:
Didi, Pelé, Zico, Jairzinho, Robinho... Ou sobrepomos um apelido,
uma espécie de aposto, aos nomes próprios, como no caso
de Gérson, que é “o canhota” (de ouro),
ou no de Romário, “o baixinho”. Às vezes
juntamos um apelido a um apelido: Zico, o galinho de Quintino.
Recentemente, a diretoria do Flamengo baixou impositivamente a norma
de que os jogadores do clube deveriam ser chamados pelo nome próprio
ou sobrenome, mas não por apelidos. Para meu espanto, até
onde pude acompanhar ninguém da imprensa repudiou essa imposição,
nem mesmo deu a ela uma maior atenção. A principal manifestação
de repúdio veio de um jovem jogador: Geninho, assim apelidado
desde as divisões de base do clube, e que agora a diretoria
insistia em transformar em Emerson. O argumento dos diretores do clube
foi o da seriedade: os apelidos habituavam os jogadores à irresponsabilidade
e eram prejudiciais a sua imagem. Todos os torcedores rubro-negros
ou todos os amantes do futebol, pelo menos os cariocas, sabem o quão
mal das pernas anda o Flamengo; o clube sofreu com seguidas administrações
incompetentes ou corruptas, descaracterizou-se, perdeu a marca da
raça e tornou-se, de fato, o clube da irresponsabilidade, onde
o profissionalismo deu lugar à famigerada turma do “chinelinho”
(jogadores que simulavam contusões ou forçavam suspensões
para não jogar, não viajar com a delegação,
enfim, jogadores, cujo representante maior foi sem dúvida o
talentoso mas pouco inteligente Felipe, que passavam a maior parte
do tempo de chinelos, à margem do campo de treinamento). Assim,
a sábia diretoria do Flamengo concluiu que o grande culpado
da farra eram os apelidos, e mandou proibi-los.
Ocorre que, precisamente, a especificidade do futebol brasileiro está
em certa irresponsabilidade: na ginga, na arte do engano, na dissimulação.
Todo apaixonado por futebol sabe que jogar bem é saber enganar
o adversário: a finta, o drible, a pedalada, o corta-luz, o
elástico, o passe à la Ronaldinho Gaúcho (olhar
para um lado e passar para o outro), o chute com efeito, etc. O futebol
é a arte da mentira, mas uma mentira inventada e contada pelo
corpo em uma fração de segundos. O drible é isso:
o jogador diz, com uma breve sintaxe de pernas e tronco: “vou
pra esquerda”, o marcador, seu corpo, acredita, segue para a
esquerda, e o jogador realiza o drible indo para a direita. A lógica
do futebol é a do engano, e suas operações são
realizadas pelo corpo em frações de segundo. O jogador
rápido é aquele que pensa com o corpo, sem mediação
da cabeça: se parar para pensar, já era. Dissimular,
mentir, esconder (na pedalada e no corta-luz os jogadores escondem
por um instante a bola - instante suficiente para desnortear o marcador),
assim procede o melhor futebol do mundo, o brasileiro. A diretoria
do Flamengo comportou-se como um marcador ludibriado; pressentiu que
havia uma associação entre os apelidos e a irresponsabilidade,
mas confundiu decisivamente o lugar das coisas: não soube distinguir
a irresponsabilidade fora do campo, condenável, da irresponsabilidade
dentro do campo (aquela dos dribles, da arte do engano), desejável.
Pois bem, que relação têm com tudo isso os apelidos?
O escritor Miguel de Unamuno dizia de nossa língua que o português
é o espanhol sem ossos. Mario de Andrade, que tomou para si
a tarefa de dar à língua portuguesa escrita no Brasil
um caráter nacional (é a tentativa do fraco romance
“Amar, verbo intransitivo”, e do extraordinário
romance “Macunaíma”), afirmava que não se
deveria falar em “língua brasileira”, mas em “língua
nacional”, na medida que a língua que compartilhamos
é o português (sob os decisivos aspectos sintático
e morfológico), mas um português deformado, por dentro,
pelas características sócio-culturais do Brasil 1. Gilberto
Freyre, numa emocionante passagem de “Casa-Grande & Senzala”,
fala de como os escravos, notadamente as mucamas, “mastigaram”
a língua portuguesa, tiraram-lhe os ossos, a fim de que as
crianças pudessem falar sem engasgar. Assim, a presença
da(s) língua(s) africana(s) no português, junto ao modo
sócio-afetivo que regulava as relações na casa-grande,
foi desossando a língua portuguesa falada no Brasil, conferindo-lhe
um caráter inequivocamente nacional. Desossadas eram as relações
sócio-afetivas entre senhores e escravos, filhos de senhores
e muleques, amas e mucamas: relações marcadas por contradições
e ambivalências de que nenhum pensamento unilateral pode apreender
a verdade. Gilberto dá como exemplo a famosa colocação
do pronome oblíqüo antes do verbo, emprego gramaticalmente
errado, mas afetivamente justo: no lugar de um “dá-me”,
imperativo, distante e austero, o “me dá” carinhoso
e quase infantil. O “me dá” é característico
do português do Brasil, uma construção lingüística
formada pela singularidade social deste país. Gilberto fala
também da transformação dos nomes próprios
em apelidos, geralmente por via de repetição de sílaba
ou diminutivo: Mariazinha, Mané, Fafá, Bebeto, Toinha,
Cacá, etc. O diminutivo indica um tratamento próximo,
carinhoso, ao passo que a repetição da sílaba
(geralmente a inicial) remete à linguagem infantil. Também
aqui reinventam-se os nomes investindo neles toda a carga afetiva
que caracterizava as relações sociais no processo de
formação do Brasil. São esses traços singulares
da formação social do Brasil - em que o afeto cumpre
importante papel – que fazem com que a pronúncia brasileira
do português soe, como sugere Antenor Nascentes, “arrastada
e suave”, em comparação àquela, “rápida
e energética”, do português de Portugal. Daí,
ainda, ter Eça de Queirós denominado português
com açúcar a fala do Brasil.
Os apelidos e diminutivos são portanto traços da formação
do Brasil inscritos nos nomes. Traços que trazem a marca de
uma afetividade ambígüa, forjada no seio de contradições
sociais que o afeto a um tempo amenizava e mascarava (como sintetizou
perfeitamente Sergio Buarque de Holanda no conceito de “homem
cordial”). Os apelidos e diminutivos remetem assim às
ambigüidades constitutivas do Brasil, à forma escorregadia
de se manter as tensões sob controle, procurando operar por
dentro das contradições, tentando achar brechas e acomodações
ao invés de partir para um confronto aberto: é a malandragem,
ou o famoso “jeitinho brasileiro”. O malandro é
justamente o tipo que surge da permeabilidade da formação
urbana do Rio de Janeiro no começo do século XX, em
que as fronteiras, físicas e morais, entre a lei e o crime
não eram bem determinadas, em que diversas classes sociais
dividiam um mesmo espaço indistinto. O malandro é aquele
que evita a confrontação, é aquele que ocupa
dois espaços contraditórios ao mesmo tempo: é
a ambigüidade encarnada, corporalizada. A ginga do malandro atualiza,
no corpo, momentos decisivos da formação brasileira.
Assim também a síncope no samba, o “negaceio estrutural”
(como sugere José Miguel Wisnik) que lança o corpo de
um lado para o outro, o corpo que finge estar aqui e se move para
lá, o corpo que engana e dissimula, o corpo escorregadio, desossado.
Tudo isso é bastante conhecido, como são demasiadamente
conhecidas também as mazelas que um tal desossamento ético
traz para o país. Mas se trata, em primeiro lugar, de reconhecer
esse desossamento como traço formador do Brasil, e em seguida
de saber delimitar os espaços em que ele é desejável
- como no futebol ou no ritmo musical - e aqueles em que é
nefasto - como na política. É possível, infelizmente,
que a parte positiva da cordialidade, o afeto hospitaleiro, esteja
se dissolvendo, como argumentou Contardo Calligaris em artigo relevante,
em meio à insustentabilidade do mascaramento da catástrofe
social brasileira 2. A relação
entre pessoas de classes sociais diferentes passa a ser marcada pela
hostilidade, não pela cordialidade. É claro, entretanto,
que não se trata de fazer o elogio do homem cordial, mas de
tentar preservar o afeto e a proximidade ao mesmo tempo que tentamos
respeitar as leis e confrontar abertamente as mazelas sociais. Desafios
do Brasil.
Mas deixemos essas questões amplas demais para serem tratadas
aqui e voltemos aos apelidos. Os apelidos tiram os ossos dos nomes
próprios, estão investidos de afeto e atualizam, no
nome, características decisivas da formação brasileira.
Os apelidos nos enviam imeditamente ao mesmo processo social que veio
a dar no malandro, no samba e na arte do engano dos grandes craques
de nosso futebol. Em seus primórdios, o futebol brasileiro,
importado da Inglaterra, importara-lhe também os nomes: goalkeeper,
center-half, referee; assim como os jogadores, que, no começo
do século XX, quase todos brancos e de classes altas da sociedade,
eram chamados em geral por seus nomes e sobrenomes. A história
dos apelidos, como deixa entrever o livro de Mario Filho, “O
negro no futebol brasileiro”, confunde-se com a história
da ascenção do negro no futebol brasileiro, e portanto
com o processo de apropriação brasileira do esporte
bretão. Os apelidos flagram o processo mesmo de abrasileiramento
do futebol: o momento em que aquela “gente de classe baixa,
mal sabendo ler e escrever, com um nome só, às vezes
até sem nome, apenas com um apelido” 3
o momento em que essa gente vai abrindo seu caminho em meio ao racismo
escancarado que era vigente no mundo do futebol.
Quando se fala em Pelé, Mané, Zico, Robinho, estamos
diante do Brasil - dos senhores e escravos, das mucamas e muleques,
dos malandros e navalhas, dos quadris e do gingado. Os apelidos, pelo
diminutivo e pela repetição, remetem à linguagem
infantil, e daí à ludicidade, que é o fundamento
de todo jogo, principalmente o do futebol. Os apelidos são
lúdicos como o jogo de bola: já prefiguram o corpo no
nome. Os apelidos jogam bola sozinhos, já fazem o aquecimento,
são um espetáculo à parte. Na hora do par ou
ímpar, quem você escolhe para o seu time, Emerson ou
Geninho? Você confiaria em um ponta-esquerda chamado Roberto
Augusto? De lado as brincadeiras, um corpo desossado, gingador e irreverente
reivindica um apelido, um diminutivo, um nome também ele lúdico
e sem ossos. A história do nosso futebol é também
a história dos apelidos. Não conhecemos Édson
Arantes do Nascimento ou Arthur Antunes Coimbra, mas o que eles faziam
dentro de campo e não se acomodava a esses nomes duros, rígidos.
A diretoria do Flamengo deveria ter ossos ela mesma, ser responsável,
transparente, firme – deixar os apelidos nomearem o engano,
a irreverência, a alegria, a encantadora molecagem que se pratica
dentro das quatro linhas.
1. A controvérsia sobre a denominação
da língua praticada no Brasil já mobilizou muitos
escritores, gramáticos, filólogos e lingüistas
desde, pelo menos, José de Alencar. Antenor Nascentes
lembra que houve mesmo um projeto de lei, apresentado à
Câmara Municipal do Distrito Federal, em 1935, propondo
a obrigatoriedade da expressão “língua brasileira”.
Nascentes, tal como Mario de Andrade (e, mais tarde, um Celso
Cunha), defende contudo que esta denominação é
equivocada, na medida em que “faltam-lhe [à língua
falada no Brasil] as características que lhe dêem
a categoria de uma língua”. E argumenta: “O
sistema fonético é o mesmo do português;
na pronúncia normal só se nota a ausência
do e reduzido. As flexões são idênticas;
morfemas de número (o s), de gênero (o a), de grau
(íssimo), desinências pessoais e temporais dos
verbos não apresentam discrepância. A sintaxe,
a não ser o caso da colocação dos pronomes
oblíquos, poucas variações apresenta. A
diferença de sotaque (notada dentro dos próprios
países) é secundária. O abundante vocábulo
de origem tupi e africana não atinge o cerne da língua
portuguesa, pois as palavras fundamentais, como os nomes das
partes do corpo, de parentesco, os numerais, os verbos que indicam
as ações essenciais à vida, as partículas
são todos portugueses”. A propósito, o projeto,
submetido à resolução do então prefeito,
Dr. Pedro Ernesto, foi por este vetado através dos seguintes
termos: “O projeto fere a verdade científica”.
(cf. NASCENTES, Antenor. Estudos filológicos. Rio de
Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2003, pp 309-316.)
2. O artigo a que me refiro, intitulado “Do homem cordial
ao homem vulgar”, consta no caderno Mais!, da Folha de
São Paulo, edição de 12 de dezembro de
1999.
3. FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro:
Mauad, p. 137. |
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