Dança teu funk, o rock, forró, pagode, reggae
Teu hip-hop
Fala na língua do rap.
É muito estranho o jeito como Chico Buarque canta esses
versos de “Subúrbio”, a canção que
abre seu novo disco, Carioca. Com a boca meio mole, ele parece
estar falando num limite entre a imitação e a ironia.
Detalhes como esse, num disco como esse, podem servir de entrada para
se começar a pensar sobre um trabalho que pede para ser ouvido
e reouvido, pensando e repensado, como ele mesmo parece pensar e pesar
as coisas.
Escrevendo recentemente sobre o disco na Folha de S. Paulo
(29/5/06), Guilherme Wisnik apontava que “Subúrbio”
incorpora a saudação das rádios comunitárias
(“Fala, Penha / Fala, Irajá / Fala, Olaria”), e
canta para “o avesso da montanha”, onde Jesus “está
de costas” – no sentido literal inclusive, considerando
a geografia carioca. Pode-se ir mais longe: a canção
incorpora também, em vários pontos, a prosódia
do hip-hop, assim como, em outros tantos, traz para o lado de cá
as nostalgias do choro-canção, sobrepondo tempos e estilos
com um domínio raro das ambiguidades.
A canção responde a várias pressões de
uma vez. De um lado, traduz instâncias críticas do momento,
especialmente quando ouvida em seqüência com as três
seguintes. De outro, responde às indagações que
o próprio Chico se fazia, numa entrevista a Fernando de Barros
e Silva, durante as gravações da série recém-lançada
de DVDs: “Talvez a canção, tal como a conhecemos,
seja um fenômeno do século 20 [...] Quando você
vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma
uma negação da canção [...] o sinal mais
evidente de que a canção já foi, passou”.
1
Que a tese de Chico ecoe outra entrevista, de José Ramos Tinhorão2,
que por sua vez repetia uma idéia de José Miguel Wisnik,
dá a medida da rede de recados que caracteriza nossa música
(para usar outra idéia de Wisnik). E essa rede, em Carioca,
ajuda a pescar referências diversas, à medida que se
vai ouvindo o disco e aprendendo com ele.
Não por acaso, já perto do fim a letra de “Subúrbio”
cita “Águas de Março”, de Tom Jobim, canção
suprema do seu maestro soberano, que ele confessa (no DVD dedicado
ao amigo) sentir sempre às suas costas quando está compondo.
Mas o afeto tão positivo daquela canção chega
aqui a um ponto de fuga que não se permite maiores ilusões:
“Perdido em ti/ Eu ando em roda/ É pau, é pedra/
É fim de linha/ É lenha, é fogo, é foda”.
Só um compositor e um poeta dessa força conseguiria
incorporar o rap a Tom Jobim; e, nesse ponto, o próprio tema
principal da canção (ouvido de saída em “Lá
não tem brisa / Não tem verde-azuis”), uma oscilação
de duas notas, o mero intervalo repetido de segunda maior, começa
a soar como a contração da terça repetida de
“Águas de Março” (“É pau, é
pedra...”). Que essa terça sirva de introdução
para a canção seguinte pode até ser coincidência
– será?
Certamente não é casual que a jobiniana “Outros
Sonhos” responda a “Sonhos Sonhos São”, do
disco anterior, As Cidades (1998). Lá a fantasia exacerbava
a loucura do mundo globalizado, do capital voador; o sonho agora nos
leva para um falso paraíso do morro, alucinada terra da serenidade,
onde se avistam os “guris inertes no chão” e tudo
é descrito às avessas da intuída, violenta realidade.
Se a entrada do acordeom de Dominguinhos (“belo e sereno era
o som”) cumpre ali a função de fazer soar a bondade,
serve também de signo para alguns doces delírios, à
maneira da chanson francesa, delírios que ganharão
importância mais tarde.
Antes, do céu se desce ao chão, na “Ode aos Ratos”,
canção em parceria com Edu Lobo, da trilha de Cambaio,
que agora recebe a adição de uma “Embolada”
(boa tradução para rap/wrap). Esse rap dos
ratos, gravado com voz distorcida, serve de contraponto para a última
estrofe, sobre o “saqueador da metrópole”, que
vai “do cano de esgoto/ pro topo do arranha-céu”.
Nesse ponto a “Ode” cita “Veneta”, também
de Cambaio, a canção da imigrante em São
Paulo, sentada “na esquina da fome [...] da gangue da Praça
da Sé”. O subúrbio, como se vê, é
mais embaixo.
E depois disso “Dura na Queda” – canção
que abria o disco de Elza Soares, Do Cóccix até
o Pescoço (2002) – soa quase como um epílogo,
um canto solar de resistência, face às circunstâncias
que as primeiras três canções definem com uma
contundência que faz pensar na poesia social do Drummond da
última fase. Que um disco de canções permita,
aliás, comparações assim só ressalta uma
característica da nossa música popular, onde os registros
se cruzam de modo insólito e pedem modos variados de recepção.
Que esse cruzamento pode abarcar contextos muito diversos fica evidente
ao se escutar o resto do CD, quase um outro disco, seja do ponto de
vista musical, seja literário.
Não há espaço para analisar cada canção
e fica valendo, então uma tese redutora: desse ponto em diante,
Chico sai de fora para dentro e vem habitar aquele espaço íntimo
consagrado em canções como “Futuros Amantes”
(de Paratodos, 1993) e “A Ostra e o Vento” (de
As Cidades), para ficar só nessas duas do repertório
da década passada. São canções onde se
leva adiante a lição musical de Tom Jobim, tecendo cromatismos
e inventando predestinações da harmonia. São
também uma lição de resguardo, cultivando um
estilo nada espetaculoso, que parece moldado para sustentar a vida
possível, em meio ao caos. Com a diferença, aqui, de
que Chico parece estar empenhado também em construir uma espécie
de museu particular da canção, esse “fenômeno
do século 20”.
O disco, então, vira um acervo de modos de fazer canção,
ressaltados pela ciência dos arranjos de Luiz Cláudio
Ramos: à francesa (“Porque Era Ela, Porque Era Eu”,
com direito até à citação de Montaigne),
à americana (“As Atrizes”, “Sempre”),
à bossa-nova (“Ela Faz Cinema”), à italiana
(“Renata Maria”, parceria com Ivan Lins), à moda
clássica brasileira (“Leve”, com Carlinhos Vergueiro),
à vanguarda (“Bolero Blues”, com Jorge Helder,
com uma letra que reinventa os mitos de senescência de “Garota
de Ipanema”).
Não por acaso, o disco fecha com “Imagina”, a primeira
canção de Tom Jobim, composta aos 18 anos, em 1945,
e que só ganharia letra de Chico em 1983. Interpretada por
Chico junto com Mônica Salmaso, a canção da “lua
cris” soa tão mais tocante quando se volta ao “Subúrbio”
e o mundo desimaginado volta a pesar sobre os ombros da música.
Ver a música resistindo, assim, ao que ela mesma faz ver renova
a lição da arte de Chico Buarque. Que essa arte seja
tão ciosa de suas virtudes, e ao mesmo tempo de seus limites
no mundo, que ela preserve com tanto afinco o que tem a dizer em meio
ao tumulto universal, é ainda outra lição, que
um disco como Carioca nos ensina a escutar.
1. Folha de S.Paulo, 26/12/2004.
2. Caderno “Mais!”, Folha de S.Paulo, 29/8/2004.
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