Foi em 1985. Um telefonema de Brasília, do Itamarati,
me fez saber que eu estava sendo convidado para um Congresso
Internacional de Poesia em Oslo, Noruega. Nenhum contacto
prévio.
Achei estranho. Perguntei se haviam sido convidados outros
brasileiros. Sim, o poeta Oswaldino Marques. Só ele e eu. Achei
estranhíssimo.
Oswaldino era tido por mim (e por nós, os famigerados poetas
concretos de São
Paulo) como um adversário figadal. É a ele (se não
for a Antonio Houaiss) que aponta o dedo-em-riste de
Haroldo na hoje famosa foto da revista O Cruzeiro, de fevereiro
de 1957, no debate da UNE, no Rio, após a conferência de
Décio Pignatari.
Os dois, Houaiss e Oswaldino, foram os mais encarniçados opositores
que se apresentaram naquela noite para discutir a poesia
da Exposição
Nacional de Arte Concreta, trazida do Museu de Arte Moderna
de São
Paulo (dezembro de 1956) para o saguão do Ministério da
Cultura do Rio. Um debate que abortou logo num bate-boca
generalizado. Depois, Oswaldino publicaria na Revista
do Livro o estudo O
Concretismo, Ou Uma Hipótese Autocontrariada (e acabaria
entrando inelutavelmente para o meu painel whistleriano, A Arte Gentil
de Fazer Inimigos).
Ante o inopinado convite, hesitei em aceitar. Mas num
segundo pensamento, me disse: Por que não? Afinal, não
havia sentido em deixar de fazer uma viagem tão extraordinária
para mim pelo desprazer de encontrar um suposto desafeto.
Que nos ignorássemos!
Qual a minha supresa ao chegar ao hotel em Oslo, com
minha mulher, e ouvir da recepcionista: “Há um brasileiro
também
aqui, que está esperando pelo senhor!” Pois não
era ninguém
menos que o Oswaldino. Deixamos as malas no quarto e
nos dirigimos ao seu. O “inimigo” era franzino, miúdo,
cabelos brancos, fala amena. Simpatizamos-nos instantaneamente.
Saímos
juntos de hotel, que havíamos abominado, graças à intervenção
da embaixada brasileira, acionada por mim naquela mesma
noite. Eu o deixei num barco-hotel onde se hospedavam
vários
dos congressistas. Deu certo para ele, que viajava sozinho
e por tempo exíguo, mas
mas não para nós, que ainda iríamos até Roma,
com bagagem reforçada para enfrentar frio e calor, e acabamos
mudando para um terceiro hotel finalmente aprazível. A partir
daquele encontro, nós e Oswaldino nos tornamos companheiros inseparáveis
nas caminhadas turístico-poéticas pela cidade “soturnoturna” de
Munch. E continuamos amigos, após a volta ao Brasil.
No congresso estava Octavio Paz, acompanhado de sua esposa.
Eu já o conhecera pessoalmente em São Paulo. Ao longo
do congresso, nos encontramos várias vezes; eu e minha mulher,
chegando a sair com eles, em altas horas, por uma das “noites
brancas” do verão norueguês. E havia nomes conhecidos,
como o francês Jacques Roubaud, e companheiros de “linguaviagem”,
como Lamberto Pignotti, representante da “poesia visiva” italiana.
As apresentações se faziam simultaneamente, em locais
diferentes, e não havia possibilidade de acompanhar tudo. Numa
das noites de poesia, meio por acaso, entramos numa sala
onde se iniciava uma performance. O protagonista era
uma figura curiosa, um homem de pequena estatura, chapéu na cabeça,
jeito de Buster Keaton, que me pareceu bastante idoso
e que começou
a ler impassivelmente um poema tartamudeante, “humoramorado”,
que começava “pas
pas paspaspas pas…”: de “pas” (jogando com
a ambigüidade da língua francesa, de “passo“ a “nada”),
passava por “passion” e derivados paronomásticos
de “passive” a “pissez”, incorporava outras
sequëncias em “dom” (dommage, dominez) e “neg” (negation,
neige, né, nage) e ia crescendo em intensidade e transmutações
verbais até chegar à paroxística declaração
de amor que o animava, e que poderia soar mais ou menos
assim em português:
eu te é eu te amo am
passa passio ó passio
passio ó minha gr
minha gra escar escarra sobre as rações
minha grande minha gr ó minha te minha te
minha te minha gran
ó minha grande minha terr
minha terrível paixão passional
eu te eu terri eu terrivel passio eu
eu eu te amo
eu te amo eu te amo
eu te amo eu te eu te eu
te amo passionalmen
eu te amo
passionalmente amante eu
te amo eu te amo passionalmente
O texto de um mago “gago-apaixonado” joycesteiniano, que
fazia as palavras nascerem umas das outras, lidas com
incrível
virtuosidade e com emoção implosiva, e que terminou sendo
aplaudido com entusiasmo pelos que assistiam à apresentação.
Retirou-se discretamente e não o vi mais. Também não
o notei na sessão de encerramento, um recital de que participei
com os demais poetas convidados, tendo à frente Octavio Paz –
longuíssimo
sarau que não cheguei a seguir por inteiro. Ghérasim me
parecia apartado do grupo de poetas franceses, embora
o seu texto houvesse sido escrito no idioma deles. Eu
nunca tinha ouvido falar desse poeta, que foi quem mais me impressionou
de todos os que vi e ouvi naquela ocasião. Perdi contacto com
a sua poesia e não fixei o
seu nome. Mas nunca me esqueci da impressão que me deixara.
Tempos depois reconheci o seu poema num CD independente
de poesia e confirmei o seu nome: Ghérasim Luca. Ele estava
para fazer 72 anos quando o “viouvi” em Oslo – esse
romeno auto-expatriado nascido em Bucarest com o nome
de Salman Locker. Vivia em Paris, desde 1952, “etranjuif” (estranjudeu)
como se autodefinia, aparentemente muito solitário, apesar do
pequeno número de admiradores que o rodeava. Soube, anos depois,
com surpresa, que se suicidara em 1994. Despejado do
pequeno apartamento em que morava, atirou-se no Sena, entregando-se à morte
– “la
mort, la mort folle, la morphologie de la méta, la métamort,
de la métamorphose ou la vie, la vie vit, la vie-vice, la vivisection
de la vie” (ou, literalmente, com menos metamorfose morfológica,
em português: a morte, a morte louca, a morfologia da meta-, a
metamorte, a metamorfose da vida, a vida vive, a vida
vício,
a vivisseção da vida). Como o seu conterrâneo, amigo
e compatriota Celan, que se jogara no decantado rio,
vinte e poucos anos antes.
Integrante do grupo surrealista romeno, Ghérasim se incorpora,
a seu modo, à antitradição modernista dos seus
compatriotas Brancusi e Ionesco. Trabalha a linguagem
poética
por descascamento fenomenológico. Uma espécie de des-surrealismo
concretante. Um pouco de Brisset, o saboroso etimólogo meio maluco
(etimolouco?) revelado pela antologia do humor negro
de Bréton,
mas um Brisset não-doutoral, mais elaboradamente poético
e dramático. Caberia bem a Ghérasim a fórmula com
que Jean Tardieu definiu a atuação do poeta: “le
langage…l’engage” (a linguagem… o engaja).
Acho limitativa a redução ao quadro do surrealismo no
qual tem sido estudado. É antes um ex- ou extra-surrealista,
como Artaud, e me parece melhor situado num contexto
mais amplo, de Getrude Stein e Joyce à poesia concreta. Desde
logo, a diferença
gritante com os surrealistas. Não se enquadra na ideologia de
um projeção automática do inconsciente. Antes,
usa programaticamente a associação intervocabular, joga
em especial com as homofonias – abundantes no idioma francês,
que adotou – para suas mensagens poéticas de biolinguagem
encurralada entre o amor e a morte. Traduzi-lo é mais ou menos
impossível, sem pesadas perdas. É preciso, acima de tudo,
lê-lo e ouvi-lo no original.
Suas obras, na verdade, tiveram pouca repercussão quando saíram,
quase sempre em edições limitadas, nas décadas
1950 a 70; até então estavam circunscritas à divulgação
nos meios literários e artísticos de Bucarest. Só começaram
a ser conhecidas e reconhecidas quando reeditadas nos
anos 80. O seu “turning
point” é o livro de poemas Héros-Limite (Herói-Limite),
1953, publicado em Paris e escrito em francês, idioma em que passou
a escrever por volta dessa época. Dentre as suas obras editadas, é da
maior importiancia o CD duplo, Ghérasim Luca par Ghérasim
Luca, Edição José Corti, 2001. onde se encontra “Passionnément“.
Revelado no livro de poemas Le Chant de la Carpe (Corti, 1973),
teve uma primeira versão publicada em Amphitrite, editado
em Bucarest em 1947, segundo informa Dominique Carlat,
um entusiasta do poeta, autor do livro Ghérasim Luca, L'intempestif (Corti,
1998).
Pode-se ouvi-lo
na Internet. [clique
aqui
*]
Embora sua inquietação poética se explicite prevalentemente
na área da poesia sonora, e ainda que tenha declarado ser-lhe
difícil exprimir-se em uma linguagem visual, não deixou
ele de lado esse território de experimentação.
Herdeiro das colagens dadá e cubistas, criou ao longo de seu
percurso artístico uma série de intervenções
plásticas, as “cubomanias”, que recortam e rearranjam
aleatoria mas estruturadamente recortes quadrados de
fotografias e imagens. Um processo que, segundo ele próprio,
ia “da 'elipse' geométrica à 'elipse'
gramatical”. No campo mais propriamente verbal, La Voici La
Voie Silanxieuse (Jose Corti, 1997), edição póstuma
de um album de poemas visuais de 1962, dialoga com a
poesia concreta, então bastante difundida nos círculos
de vanguarda europeus. Influenciada por ela, saíra já o
nº 29 da revista
parisiense Les Lettres (janeiro de 63) em que Pierre Garnier
publicaria o seu Manifeste Pour Une Poésie Nouvelle Visuelle
et Phonique, datado de 30 de setembro de 1962. A abordagem de Luca é bastante
original: seus poemas “silansiosos” são manuscritos
e literalmente pulverizados — as letras formadas de uma poeira
de pontos que parece apenas modelar o vazio, num diário poético
informal, estabelecendo desde logo uma ambiência icônica
para a sua “ontofonia”. Modeladas para se autoexpressarem
visualmente, as palavras emergem ou submergem em palavras-valise
(“echorps”/echo + corps), associações paronomásticas
(“ascétique
asceptique”) ou em construções, ora difusas, ora
geometrizantes e concretas, como em “visiondevide” ou ou “pourrien
au monde/au monde pourri”. E podem chegar à presença
solitária, para explicitar a experiência – a palavra “silensophone”,
por exemplo – ou a uma quase ausência virtual – um “feu” (fogo
ou falecido) que mal se descobre a formar-se no pontilhado
de uma página.
Não parece ter levado avante esse tipo de trabalho. ”Ma
carrière poétique est terreminée” (minha
carreira poética esta terraminada), escreveu ele à certa
altura.
Mas é na poesia oral que Ghérasim se realiza plenamente. É um
caso raro de poeta que não pode prescindir da fala para completar-se.
Postos na página seus poemas, como as letras de música,
ou como os textos de Gertrude Stein, parecem descuidados,
ou menos acurados, embora as cerradas trocas intervocabulares
os enervem e encham de energia. Falados e, especialmente,
ditos por ele, ganham dimensão e intensidade,
o seu “gaguejamento” é elaborado, tem assinatura
estética, co-envolve interpetação e voz num todo
orgânico, único. Num texto revelado postumamente no livro Ghérasim
Luca(Passio Passionnément) de André Velter,
publicado em 2001, o poeta assim se definiu: “A poesia é um
'silenciofone', o poema um local de operação, no qual
a palavra é submetida a uma série de mutações
sonoras; cada uma de suas facetas libera a multiplicidade
de sentidos de que elas estão carregadas. Eu percorro hoje uma
extensão
onde o barulho e o silêncio se entrechocam – centro choque
–, onde o poema toma a forma da onda que o pôs em ação.
Melhor, o poema se eclipsa diante desuas conseqüências.
Em outros termos: eu me oralizo.” Em Dialogues (Flammarion,
1977), Gilles Deleuze se refere a Luca como “um grande poeta entre
os grandes”, sublinhando a invenção do seu “prodigioso
gaguejamento”. Talvez não tão maiúsculo como
querem alguns dos seus admiradores desmesurados. Mas
nada pequeno. A partir da palavra-átomo invertida sem-fim-nem-começo
– é preciso
ler na língua original para reconhecer o palíndromo entre
os dois primeiros vocábulos (“mot / 'atome' renversé /,
sin fin ni commencement”) – sua poesia materializa o sonho
e des-surrrealiza a mecânica do surrealismo discursivo. Sua particular
palavra-puxa-palavra – uma técnica fio-de-navalha, que
em mãos de outros quase sempre descamba para o facilitário
e a gratuidade – fere, com garra, o léxico e a sintaxe
da poesia e se internaliza nos vocábulos em corte profundo. Introjetada
na carne da linguagem, extrai do seu sumo e de suas raízes uma
vida imprevista.