resiste, ro
Augusto de Campos

ronaldo azeredo y la síntesis del poema
primeira entrevista
de ro para ro
poemúsica
 
Ronaldo Azeredo


Quando conheci Ronaldo, em 1952, ele era um garoto de 15 anos, irmão da minha namorada e depois mulher e companheira, Lygia. Um rebelde garoto do Rio, que fugia do colégio e de casa. Não tinha passado nem presente literário. A leitura lhe vinha das irmãs intelectuais, Lygia e Ecila. Noigandres, recém-formado, já estava em revista nas mãos delas, e antes, nossos primeiros livros. Instigado por elas, movido por sua inata rebeldia, Ronaldo começou a produzir uma prosa bruta, uma safra estranha meio arrancada das entranhas, cheia de erros e de urros, que me impressionou. Era a época em que nós outros principiávamos a tramar uma revolução. Com a cega animação da juventude, acreditávamos que a poesia concreta ia salvar o mundo. E conspirávamos, catacúmbicos, contra o lirismo nacional, o verso e a sintaxe, aos quais Ronaldo não dava a mínima.

A senha e o signo foram passados para o “enfant terrible”, iletrado e boêmio, que, como eu, gostava de Noel Rosa e Jorge Veiga. De repente ele começou a ficar ainda mais esperto e a chegar mais perto. E deu uma resposta que ninguém dera até então. Em dezembro de 54 eu enviei ao Décio, então em Paris, o primeiro esboço de um espantoso poema que, depois de uma poundiana “caesarean operation”, passou a ser o prenúncio do Ronaldo poeta, chegando a figurar na Exposição Nacional de Arte Concreta de 56 num cartaz feito pelo Fiaminghi. PREFIXO. PREFÁCIO. PRELÚDIO. PRENÚNCIO. POEMA. “Este será o meu legítimo epitáfio”, me escrevera Ronaldo. E Décio, replicando à minha carta, saudou a minha descoberta desse “Ro do haras Azeredo, outsider do Grande Prêmio Arthur Rimbaud” e “possível comensal da mesa noigandres”. Numa de suas prosas bárbaras da época (OBSERVAÇÕES SOBRE A FAMÍLIA) escrevera Ronaldo, profético: “Chegaram os navios cheios de novos, para viver, amar e dizer algo neste mundo”.

Aos 17 anos, o menino experimentava tudo. Tomando conhecimento de alguns trechos que eu traduzia do Finnegans Wake, respondeu com o MONSTRO MOONZEBUR e O DRIZ DA FEIA, pequenas fábulas joycecarrollianas.

MOONZEBUR começava assim:

“é lindo. e ao luar voa movido pela su ave resplanação – em suspiros line ares”

O DRIZ DA FEIA:

“e em seus cabeles, não ainda ali, mas mais fundo, bem na formação dos capimlares, na oca forrorosa habita a feia e seu driz”.

Mas Ronaldo, em breve, abandonaria as experiências com a prosa, que no futuro só retomaria em investidas ocasionais, embora às vezes marcantes, como os fragmentos de A GRANDE CIDADE (Invenção n° 3, junho 1963) – a cidade de “nuvens vermelhas”, onde “um capitalista morre de infurto”; ou o inédito O SONHO E O ESCRAVO, de onde extraio estes “flashes”:

“o sonho:
sol      ar      luz      mar      verão
no triângulo do maiô do seu corpo o triângulo
o escravo:
frio     fumaça      pedra     trabalho
nos círculos da noite o círculo”

O poeta, que hoje declara abolir a palavra por não acreditar nela, foi abandonando a prosa, talvez por desconfiar ainda mais dela, em prol da concentração vocabular da poesia. Um radicalismo que o levaria, logo mais, em 1958, a três outros marcos: RUASOL, LESTEOESTE e VELOCIDADE – este, um “hit” internacional, incluído em muitas antologias, como The best of modern poetry (Pocket Books, 1973), organizada por Milton Klonsky, que registra: “He came to Concrete Poetry directly, without ever having written tradicional poetry”.

Nesse iliteratismo de Ronaldo talvez resida o segredo de sua rápida assimilação da linguagem assintática ou parassintática da poesia concreta e da sua familiaridade com as linguagens não-verbais. Algo em comum com o caso de Wlademir Dias Pino, com quem, aliás, veio a fazer boa amizade enquanto morou no Rio. A diferenciá-los, além da idade (Ronaldo nasceu em 1937, Wlademir em 1928), a “expertise” gráfica deste último. De algum modo, porém, os seus caminhos foram paralelos.

O passo a seguir, para ambos, foi a gradativa supressão da palavra. Ronaldo se engajaria na experiência da poesia semiótica de Décio Pignatari e Luiz Angelo Pinto (1964), contribuindo com um poema modelar. LABOR TORPOR. Wlademir inspiraria o poema processo, que acabaria convertido pelo sectarismo discipular em “doença infantil do Concretismo”. Mais generosa e coerente, a inquietação artística de Ronaldo jamais o levou a falações, parlapatices e teorréias, ou a aspirações de poder e de liderança. Limitou-se a intervir, como Duchamp, que ele mais tarde aprenderia também a amar. A diversiflcação de suas experiências, sempre imprevisíveis, e a raridade de suas intervenções, são testemunho do seu radicalismo. Mas um radicalismo puro, natural, não-autoritário.

Entre o concreto ortodoxo e a poesia semiótica, Ronaldo não deixou de dar a sua contribuição ao “salto participante”. Em 1962, na revista Invenção nº 2, portões abrem, patrões vetam, portões fecham, patrões abrem.

Do poema-código, quase didático, a exemplificar a tipologia do manifesto de Pignatari e Luis Ângelo, o poeta transitaria para interferências mais individualizadas, no território cinzento entre as artes visuais e a poesia. Ainda da fase participante vem O SONHO E O ESCRAVO (1966), cine-poemaquadrinizado, no qual as cores-código (vermelho = escravo, azul = sonho) injetam significados subliminares. Logo virão outras surpresas. O poema-cartum da mulher ambígua, cujas pérolas se degradam em catapora (1971). A célula-pedra-poesia, cujo desenvolvimento sera sempre anormal (1972). O poema ecológico de 1973, onde as imagens reticulares em preto e branco, que sugerem a automação, se chocam dramaticamente com a paisagem de postal colorido. Algumas dessas criações perdem bastante quando transcritas para o código convencional do livro. Fazem falta as folhas transparentes que introduzem superposições e ambivalências no poema ecológico e no PENSAMENTO IMPRESSO (1974); as peças do quebra-cabeças ARMAR (1977), um ludo-poema que incita o leitor à participação; os tecidos originais das panagens do poema que arfa entre a borboleta e o pulmão, da raríssima edição de 1975. Trata-se, na verdade, de poemas-livros, ou poemas-objetos que requerem display próprio e especial.

Todas essas incursões, por vezes cifradas e enigmáticas, se revelam, em última análise, biopoemas, mapeamentos de vida, quase-sinais, que recusam a palavra mas não chegam à pintura. Serão “idéias-evento”, para usar a expressão do criador da fábula-científica italiana, Giuseppe Bonaviri, um autor ainda desconhecido no Brasil. Talvez o mais comunicativo dentre esses “poemas” seja o labirintexto de 1976, uma “geografia sentimental”, como notou Antonio Risério. Dedicado pelo poeta ao seu “grandioso matriarcado” (mãe, irmãs, mulher e filha), esse biomapa embaralha as ruas vivenciais do carioca paulista, partindo da vilaisabelina Teodoro da Silva para, por vários descaminhos entre as Perdizes e o Cambuci, vir aportar na Rua Homem de Melo, que a cartografia afetiva de Ronaldo retrojeta no copacabânico Oceano Atlântico.

Lidando numa zona fronteiriça da pintura era natural que Ronaldo necessitasse do “know-how” de outros artistas, que acabariam condividindo com ele a criação de alguns trabalhos. Ele é, essencialmente, um poeta de “roughs”, de pensamento bruto. E se Valéry pedia um alemão para completar suas idéias, Ronaldo pede, frequentemente, um artista para finalizar suas “artes”. Profissionais ou amadores, cujos nomes merecem ser destacados, como Franklin Horylka, Amedea, Fiaminghi, Gilberto Mendes, Mentore.

Por último, ele descobriu Duchamp, a quem homenageia na sua casa de bonecas (1984), que mistura a Alice no País dos Espelhos com Apolinère Enameled e Étant donnés, noivas desnudadas pelo olho-voyeur da vida, num metatrocadilho tridimensional. Seu mais novo poema, ENQUANTO DUROU, também de 1984, é mais um biopoema que relega ao título a poesia inconfiável das palavras, deixando a vida à vida e a rosa à rosa.

Num belo artigo que publicou na revista GAM n° 36, de fevereiro de 77 (“Ronaldo Azeredo: Poesia Visual”), Antônio Risério escreveu: “Se nunca redigiu versos, Ronaldo também jamais se manteve confinado ao código verbal. Partiu para arranjos poéticos construídos de letras, palavras, traços, riscos, sinais, desenhos e fotos. Em seus trabalhos, atrai, mescla e atrita códigos diversos, afastando-se totalmente, em alguns casos, da escrita verbal, para estruturar signos semióticos. Aliás, ele quer fazer da semiótica uma ótica total: o olho produtor cria e o olho receptor capta. Pensamento plástico. E não é por mero acaso que Alfredo Volpi tem contribuído para a edição de muitos desses poemas. A poesia é um vale-tudo de acaso e rigor: E Ronaldo Azeredo celebra a visualidade. Alarga o campo da linguagem poética, já que a invenção, descartando estradas prontas e sinalizadas, com um posto de vigilância literária a cada cinco ou dez quilômetros, abre picadas pelo meio do mato. Com isso, não estou querendo dizer que só o visual conte, o que seria descambar pelo provincianismo carente de imaginação que caracterizou a minúscula aventura do ‘poema processo’. O que desejo sublinhar é que a poesia de Ronaldo não admite restrições letradas, sendo antes uma espécie de radar semiótico registrando sensivelmente sinais de um momento histórico.” Eu não teria nada a acrescentar. Radar semiótico. Ro.

Reconto. Redondo. Mapa biopoético. De Vila Isabel lhe veio o primeiro pai artístico: NOEL. Em São Paulo chegou ao segundo: OSWALD, que nunca soube fazer “versos”. O outro foi VOLPI, um sábio da retina, o primitivo tecnizado com que Oswald sonhou: “o importante é ter a idéia. A execução, depois, é fácil”. Mas ninguém melhor do que o proprio Ronaldo para desenhar a sua biocartografia literária e sentimental. Se o mapa arterial está expresso poeticamente em seu labirintexto, o artístico ficou explícito na síntese autobiográfica que publicou no jornal-único de Villari Hermann, “Viva há poesia” (1979) – um videouvidaclip que vai aqui embutido:

“nasci na rua teodoro da silva vila isabel na mesma rua em que
nasceu o noel rosa por sinal um grande amigo meu
para a poesia nasci das mãos firmes e generosas de augusto de campos
sou uma de suas crias
mais tarde décio pignatari e haroldo de campos
então fiquei sendo cria dos três
mais tarde de oswald de andrade
então fiquei sendo cria dos quatro
mais tarde a primeira exposição nacional de arte concreta com a
publicação do livro que lançou a poesia concreta noigandres
número três já com a minha participação rato o meu primeiro
poema de mil novecentos e cinquenta e quatro e outros depois
na exposição a água A Z
vieram os pintores e escultores e veio fiaminghi sacilotto
mauricio fejer judith cordeiro charoux
depois veio augusto haroldo décio com capa do fia o noigandres
quatro que publicou meu poema mais conhecido velocidade
depois veio josé lino grünewald edgard braga pedro xisto
depois veio o último noigandres número cinco depois veio
revista invenção depois veio luis ângelo pinto e décio com os
poemas códigos depois veio alfredo volpi que me ensinou a ser
gente
depois veio florivaldo menezes e orlando marcucci o grupo do
cambuci depois veio a partir de setente e um at hoje a publicação
anual de um trabalho meu todos patrocinados pelo volpi
tenho esse da mulher o das células da paisagem computador
o do arco-iris o da borboleta pulmão feito com panagens e esse
mapa e o outro que ainda deverá sair este ano todos muito
pouco conhecidos e com tiragens super limitadas
depois veio o hermann que se incorporou ao grupo do cambuci
depois veio o erthos albino de souza e o risério com o código
depois veio o regis o pedrinho e lenora a turma da poesia em
greve depois veio julio plaza que fez a impressão do mapa
depois veio o luis antonio o carlinhos o omar o paulo a turma da
poesia
artéria
veio o roland e o renato a turma dos físicos depois veio
o brasil o gilberto o willy e o flávio nossos músicos
depois veio o augusto o haroldo o décio o oswald o fiaminghi
o sacilotto o mauricio o fejer a judith o cordeiro o charoux
o zé lino o braga o xisto o luiz ângelo e menezes o orlando
o hermann o erthos o risério o regis o pedrinho a lenora
o julio o luis antonio o carlinhos o omar o roland o renato
o brasil o gilberto o willy o flávio o volpi então fiquei
sendo cria dos quatro”

Que mais eu poderia dizer do enigma Ronaldo e da sua poesia sem previsões? Poesia de pedra bruta, pedra pura, pedra prima? Poesia de idéias? Ou o próprio risco da poesia – um piscar de ouro nos olhos de Greta Garbo? “Professor”, chamam os amigos doutores, companheiros de chopes e papos intelectuais, ao ex-carioca do Cambuci – homenagem carinhosa à sua sabedoria sem títulos. Uma sabedoria que as firulas acadêmicas e os honores universtários, desespontâneos e engomados, já não sabem mais.

in Revista Código 11, Salvador 1986, e À Margem da Margem: Augusto de Campos, Cia. das Letras, São Paulo 1989.
Foto: Ronaldo Azeredo, 1954, por Augusto de Campos.